NOVOS TEMPOS
Luciano Martins Costa (*)
A renitente crise, que mina as esperanças nas redações de todo o país e congestiona de angustiados "focas" a porta de ingresso na profissão de jornalista, começa a definir o tipo de imprensa que teremos no futuro. Segundo alguns observadores bem posicionados, o que vai brotar dos processos de reestruturação que movimentam o setor deverá ser bem diferente daquilo que o professor Bernardo Kucinski qualifica genericamente de "a imprensa burguesa".
Alguns fatos que os analistas têm observado indicam que teremos mudanças substanciais em dois extremos do negócio de comunicação: no lado de dentro das redações, a ausência total de indícios de recuperação dos salários dos jornalistas deve tornar ainda menos atraente esta profissão de abnegados; no lado de fora das redações, onde se definem as composições de capital, um desenho completamente novo no modelo de negócio começa a tomar forma, apontando para a entrada em cena de personagens até então alheios ao ambiente da comunicação.
A questão da remuneração, que entre o final de 1999 e o começo de 2001 causou intensa migração de profissionais, atraídos da mídia tradicional para negócios online, apresenta nos últimos dois anos uma reversão que já causou uma perda real acumulada de quase 30% na média dos salários, com uma contração de 40% nos ganhos de profissionais em cargos de chefia.
Em algumas casas que ainda preservam salários substanciais e benefícios atraentes, planos de reformulação aguardam apenas o momento apropriado para surgir sobre as mesas de reuniões. O passaralho, ave maldita que de tempos em tempos assombra as redações, projeta suas asas negras novamente sobre algumas cabeças coroadas. E o processo de juvenilização da mão-de-obra, acelerado nos anos 1990, começa a produzir o desconforto do acúmulo de profissionais em torno dos 30 anos de idade, que protagonizaram aquele momento de renovação e agora expressam seus anseios legítimos e naturais de reconhecimento e definição de carreira.
"Viva a imprensa"
Não é pouco para os gestores, acionistas e os chamados advisers contratados para salvar as empresas. Além dos vícios acumulados em décadas de pouco profissionalismo, algumas das antigas casas de comunicação precisam lidar agora com as conseqüências de investimentos equivocados em projetos de jornalismo online e incursões em outros setores, cujo resultado mais tangível tem sido o endividamento em níveis perigosos.
Para piorar a situação, os responsáveis por alguns processos de reestruturação acabam de constatar que o negócio em que se meteram tem uma característica muito especial, capaz de colocar sob risco o resultado de suas ações administrativas: a tradição segundo a qual empresas de comunicação precisam ter na proa uma figura-símbolo, um pai fundador, herdeiro reconhecido do espectro ideológico em que se insere o produto editorial. É isso que tem sido afirmado em pelo menos duas das grandes casas do Rio e de São Paulo, os grupos Globo e Estado: é preciso profissionalizar, pero sin perder el ?charm? burgués.
Esse aspecto das empresas jornalísticas, ainda que questionável, estabelece limites mais estreitos para os projetos de reestruturação em curso. Levando-se em conta que a geração de herdeiros no poder ainda não deu mostras de possuir o carisma de seus ancestrais recentes ? ou pais fundadores ?, é de se perguntar até que ponto os investidores interessados em assumir os riscos de reanimar os negócios de comunicação estarão dispostos a respeitar essa característica do modelo de negócios vigente.
Três observadores consultados nos últimos dias pelo articulista ? dois dos quais envolvidos num desses processos de reformulação ? manifestaram temor de que um choque de profissionalismo radical venha a desfigurar a imprensa nacional. O terceiro simplesmente entende que, se descartar a profissionalização radical da gestão, a imprensa simplesmente não tem como sobreviver sem o socorro do Estado, recurso improvável no momento político que vivemos.
Talvez estejamos assistindo na prática à realização da clarividência do genial filósofo Villén Flusser, que certa vez, falando sobre a elite brasileira, afirmou em tom de blague: "Quando o burguês não educa seu filho, ele não cresce ? vira pequeno-burguês".
Aquele professor da USP que gosta de vociferar contra a "imprensa burguesa", como se houvesse outra imprensa que pudesse ser reconhecida como tal, pode alimentar esperanças de ainda vir a anunciar o fim desse negócio de comunicação que costuma execrar diante de seus alunos, da mesma forma como o economista Francis Fukuyama, da Universidade Johns Hopkins, anunciou o fim da História (no livro The End of History and the Last Man, publicado em 1992). "A imprensa burguesa morreu. Viva a imprensa", diria. O que ainda não sabemos é se ele teria no momento seguinte algum motivo para celebração.
(*) Jornalista