MÍDIA & RACISMO
Muniz Sodré (*)
Três fatos jornalísticos revelaram-se separadamente no decorrer de novembro, mas a observação um pouco mais atenta poderá estabelecer uma conexão entre eles. O primeiro foi a notícia ? com largo espaço e boa foto no jornal O Globo ? de que um jornalista negro integrará de agora em diante a equipe de apresentadores do Jornal Nacional. O segundo foi a persistência, nas ruas do Rio de Janeiro, dos outdoors de uma campanha de assinaturas do Globo. O terceiro, ainda no mesmo jornal, uma nota longa, na edição do feriado do Dia de Zumbi dos Palmares (20/11), sobre a renda média de negros comparada à de brancos.
A questão da renda provém de um levantamento realizado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), que aponta a desigualdade no mercado de trabalho de um país onde negros e pardos correspondem a 46% da população. Além de alertar que os negros têm os maiores níveis de desemprego no país, o estudo mostra que, em 2001, o rendimento médio dos que estão ocupados correspondeu a cerca da metade da renda dos brancos. Diz o jornal: "No Sudeste, o rendimento dos brancos correspondeu a 4,5 salários-mínimos em 2001, contra 2,3 dos negros e 2,2 dos pardos. A renda média dos ocupados na região, independentemente de raça, foi de 3,7 mínimos, acima da média nacional".
Não há grande novidade nesse estudo, exceto talvez a reiteração de uma renitente desigualdade. Sempre foi assim, e com índices de diferença maiores. Num livro de dois anos atrás (Claros e Escuros ? identidade, povo e mídia e no Brasil, Editora Vozes), chamávamos a atenção para a crítica feita nos anos 70 pelo sociólogo Francisco de Oliveira à hipótese da "redistribuição intermediária", formulada por Maria da Conceição Tavares e José Serra (ele mesmo, o pessedebista de hoje), segundo a qual a compressão salarial era necessária ao modelo de crescimento do "milagre econômico" tecnomilitar, para financiar a inversão e redistribuir o superexcedente para as classes médias. Nesta argumentação, o sistema econômico teria algo como um preconceito de classe e de cor, porque só as classes médias e ricas (brancos, em suma) poderiam consumir. Trabalhadores (pretos e mulatos) permaneceriam inibidos pela compressão dos salários, verdadeiro mecanismo de transferência de renda para as classes médias.
Para Chico de Oliveira, entretanto, a falha da argumentação estava no fato de que a compressão salarial "transfere os ganhos da elevação da mais-valia absoluta e relativa para o pólo de acumulação e não para o consumo". A renda das classes médias seria, assim, uma necessidade da estrutura produtiva em seu sentido global (e não um estado de bem-estar dos favorecidos), já que decorre das exigências técnico-institucionais da nova estrutura industrial e, portanto, das novas ocupações criadas. Isto faria da renda uma exigência objetiva da estrutura produtiva e não um efeito de presumido preconceito de classe ou de cor por parte da acumulação capitalista.
Para nós, a acumulação do capital é, em princípio, realmente neutra com relação à cor da pele do agente produtivo. Mas não é absolutamente neutra no tocante aos modelos culturais de incremento do trabalho e da produtividade ou às múltiplas formas discriminatórias da civilização tecnoeconômica, que se alimentam de uma margem estrutural de pobreza. Daí, a hipótese de um racismo sócio-econômico ao lado de outras formas correntes de discriminação.
Sugestão de pauta
A aparição de um apresentador negro no prestigioso Jornal Nacional da Rede Globo tem relevância simbólica, talvez possa estimular uma maior aceitação da pele negra por parte dos órgãos de seleção de profissionais. Inclusive, na própria mídia: Quem trabalhou muito tempo na imprensa brasileira sabe que aos negros, quando um ou outro conseguia ser admitido, reservava-se sempre o lugar da "cozinha", velha gíria jornalística para tarefas que não requeriam visibilidade pública ? como diagramação, revisão, copidescagem etc. Um redator negro poderia até mesmo ganhar mais do que um repórter claro (vem-nos à memória o excelente Juarez Bahia, já falecido), mas dificilmente aparecia. Casos e nomes poderiam ser citados.
Na televisão, há exemplos antecedentes (a TV Educativa de tempos atrás, a própria Globo, que sempre reservou um lugar "paradigmático" em determinados programas, vinculados à programação de entretenimento), mas o de agora se assenta num porta-voz de assuntos mais sisudos. Pode-se pensar na conjuntura histórica do país: no momento em que um ex-operário chega à presidência da República, um jornalista negro chega ao Jornal Nacional. Persiste o "um" paradigmático, mas se trata sem dúvida de um ponto marcado em favor da Globo.
O ponto a favor é discutível, porém, no caso da campanha de assinaturas do jornal. Ainda estão lá nas ruas os cartazes para quem quiser ver ? "assine O Globo e afaste um jovem da violência", "assine O Globo e eu ganho um futuro". Frases desta natureza para indicar que o dinheiro das assinaturas deverá ajudar jovens carentes. Os jovens retratados nos cartazes são negros (um deles apenas é acaboclado, de pele menos escura). Ora, a imagem positiva do já conhecido apresentador do Jornal Nacional choca-se flagrantemente com a imagem negativa do jovem negro (rapaz e moça) anônimo nos outdoors.
Teria sido subconsciente a associação entre pele escura e violência? Seria mesmo a discriminação racial a manifestação mais profunda de um mal-estar civilizatório inassimilável pela consciência liberal? Como questões desta ordem não parecem interessar muito às elites intelectuais da atualidade, fica a sugestão de pauta para o Fantástico.
(*) Jornalista, escritor e professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro