NOTAS DE UM LEITOR
Luiz Weis
Taí um caso em que cabe perfeitamente o clichê "quebrando uma tradição". A tradição é a da imprensa brasileira, para nem falar em rádio e TV, de se recusar a informar o público que a sustenta dos seus negócios em geral e dos seus apertos em especial.
Ao contrário do que fazem os jornais e revistas americanos, que inspiram em quase tudo os similares nacionais, o business das empresas de mídia e do setor inteiro é tabu jornalístico no Brasil.
Nos EUA, os periódicos de qualidade informam os leitores dos seus cifrões (e os dos concorrentes), como os de qualquer ramo de atividade. Se a indústria da comunicação nos Estados Unidos estivesse tão baqueada como, digamos, a sua indústria de aviação, bem ou mal isso renderia pautas, matérias, comentários e editoriais. Aqui, onde mídia virou sinônimo de crise, para quem está por dentro, é o silêncio dos culpados.
Por isso, é um impacto e tanto ? e uma tradição que se estilhaça ? quando se chega à 33? das 35 perguntas que o repórter Kennedy Alencar dirigiu ao titular da Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica da Presidência, Luiz Gushiken, na primeira entrevista exclusiva dele, que se esparrama pelas páginas A 8 e A 9 da Folha de S.Paulo de 11/5, um domingo.
O ineditismo torna a pergunta mais relevante do que a resposta. Para o que, nas redações, chama-se ironicamente de leitor incauto, devem ter sido três choques consecutivos. Um, a premissa: "As empresas de comunicação, de modo geral, estão atravessando um momento de grave dificuldade financeira". Dois, a indagação: "Haverá algum tipo de socorro financeiro, via BNDES, a esse setor?" Três, os finalmentes: "Um Proer para a mídia?"
O ministro diz que o assunto não está sendo discutido, mas, jogando o foco na mídia eletrônica, acha que o governo não deveria permitir "um processo de invasão de enlatados que venham do exterior para baratear custos". ("Enlatados" também existem na mídia impressa e, sim, barateiam custos, mas se por enlatados se entende reportagens e artigos transcritos da imprensa estrangeira, muitas vezes a sua publicação é lucro para o leitor.)
Gushiken também defende a produção, "por brasileiros", de comunicação e informação. Ao que o repórter pergunta se "isso inclui uso de recursos públicos para financiar empresas". Diante da resposta subjetiva ("Não sei se haverá um Proer, mas sinto que esse assunto não é um assunto qualquer"), Alencar emenda: "Uma Globo em dificuldades (…) merecerá ajuda ou não do governo?". O ministro aplica ao exemplo o raciocínio genérico da resposta anterior ? e a entrevista acaba.
Passada a surpresa e tendo aprendido que jabuti não sobe em árvore, este leitor ficou se perguntando: 1. Já existiria alguma coisa cozinhando nos fogões da administração para alimentar a mídia, e o repórter está sabendo? 2. Será que alguém do lado de lá do balcão sugeriu à Folha levantar o assunto, para o governo ver como as respostas poderão repercutir? 3. A Folha (ou a concorrência) vai mergulhar no tema?
A entrevista, no todo, merece o espaço que ocupa: repórter e ministro deram conta do recado. Mas alô, alô, entrevistador: não confundir eminência parda com influência parda, seja lá o que isso possa dizer, nem eminência parda (a expressão correta usada por Gushiken na resposta à pergunta 16), com iminência parda (como saiu publicado).
Plano e contraplano
Apesar do caco no título, a reportagem "Polêmica, contrapartida social é exigência antiga" (O Estado de S.Paulo, 11/5, página A 7) foi o fecho à altura de uma sucessão de boas matérias que o jornalão produziu sobre o bafafá do "dirigismo cultural" nos patrocínios das estatais para obras de arte. Como, no mesmo dia e página, a matéria "BR esgota verba e Planalto muda regra para cinema".
A história é conhecida. Quem levantou o assunto foi a Folha, em 30/4, publicando os critérios da Eletrobrás e de Furnas Centrais Elétricas para o seu patrocínio patrocinado pela Receita Federal, codinome contribuinte. É onde entram as contrapartidas sociais, que o repórter João Domingos, do Estado, revelaria terem sido exigidas pela BR Distribuídora ? o mecenas por excelência do cinema nacional ? ainda no governo Fernando Henrique.
Três dias depois do furo da Folha, numa entrevista ao Globo, o cineasta Cacá Diegues soltou os cachorros em cima do governo ? o ministro Gushiken ?, como se tivesse baixado em Brasília o espectro do realismo socialista. "Os novos critérios representam uma intervenção política e ideológica na criação artística", enquadrou Cacá.
E o produtor Luiz Carlos Barreto, o lobão-mor dos grupos que pressionam o Tesouro desde os tempos da Embrafilme, disse que "um monte de gente vai começar a fazer projetos sobre reforma agrária e o Fome Zero para conseguir patrocínio". De fato, a Eletrobrás mencionou o Fome Zero no seu documento "Política de Apoio da Eletrobrás a Projetos Culturais" ? mas, como disse Mark Twain sobre a notícia de que tinha morrido, o alarma de Barreto parece "ligeiramente exagerado".
É por aí que os leitores do Estadão acabaram mais bem servidos do que, na média, os dos outros grandes diários. Porque, além da cobertura dos fatos ostensivos ? a intervenção de Lula, o encontro entre os ministros Gushiken e Gilberto Gil, a demarcação dos respectivos territórios no trato da questão, o abraço photo-op unindo Cacá e Gushiken ? o jornal chamou a atenção para outros aspectos do rolo: matérias de Jotabê Medeiros, nos dias 6 e 7, abordaram a disputa entre cineastas paulistas e cariocas pela grana das estatais, a precária fiscalização do que é feito com ela, e o papel atribuído ao especialista em patrocínio empresarial Yacoff Sarkovas.
Sarkovas, que deu consultoria à secretaria de Gushiken, foi apontado como o autor dos parâmetros adotados pela Eletrobrás e por Furnas, o que ele nega. Diversos jornais o ouviram sobre a alegação de ter se convertido numa espécie de "ministro da cultura paralelo" do governo, como escreveu a Folha.
Mas as suas declarações ao Estado foram especialmente úteis para o leitor ver "o outro lado". Certos cineastas, comparou, "praticam métodos de usineiros, fazem filmes como usineiros e se comportam como usineiros". Usineiros, já se sabe, são mestres na arte de tomar dinheiro do Banco do Brasil ? sem qualquer contrapartida.
E, no dia 11, o Estadão informou que a BR Distribuidora já empenhou até 2005 a sua verba de patrocínios culturais ? R$ 112 milhões, dos quais R$ 88 milhões para filmes, o equivalente a nada menos de 20% do lucro líquido da empresa.
Informou, enfim, que "depois de examinar as atas das reuniões do Conselho Consultivo da BR dos últimos anos, os funcionários do Planalto (…) concluíram que parte da gritaria dos cineastas contra o ?dirigismo cultural? deu-se muito mais porque queriam a liberação de verbas já comprometidas do que por questões ideológicas".
Corta!
Denúncia vazia
No dia 9/5, a Folha fez o maior escarcéu sobre o uso do dinheiro público pelo governo. "Um grupo de 23 altos funcionários da Presidência teve um reforço de R$ 221 mil nos seus rendimentos sob a forma de ajuda de custo com a posse do governo Lula", começa matéria de 4 colunas e mais de meia página. "Se forem somadas diárias e auxílio-moradia, a verba extra paga chegou a R$ 406 mil em quatro meses, fora os salários, acrescenta o lide.
Segue-se um quadro ilustrado com os nomes daqueles que o leitor é levado a identificar como os marajás da verba extra no Planalto, entre eles o porta-voz da Presidência André Singer, ex-Folha.
Embaixo, com o fundo azul de praxe, o box "Outro lado" informa no título que "Ajuda de custo está prevista em lei e em decretos" e, no texto, dá conta das tratativas da reportagem para saber mais, junto à assessoria de imprensa do Planalto, da Casa Civil e do ministro Gushiken.
Este jornalista aposta uma verba extra contra um fósforo queimado que a maioria dos leitores sai da leitura dessas matérias com a sensação de que "alguma eles estão fazendo com o meu dinheiro".
Mas o troco veio no dia seguinte. O "Painel do Leitor" teve de publicar quatro cartas planaltinas que, ocupando praticamente todo o espaço da seção, repuseram a verdade dos fatos, a começar de que "não há nenhuma ?verba extra?, como explicou um dos autores, o citado André Singer.
A resposta do jornalista que fez a matéria, Lucio Vaz, tem 12 linhas. Nove delas reconstituem os seus contatos com as fontes oficiais e as informações recebidas. Nas derradeiras três, lê-se: "A reportagem não aponta ilegalidade no pagamento da ajuda de custo e das demais verbas extras".
Deixando de lado a sua infundada insistência na expressão "verbas extras", o que fica da resposta é a prova de que a Folha fez uma antimatéria ? uma reportagem denuncista que, afinal, nada tinha a denunciar.
O poder dos procuradores
Está implorando uma apurática exaustiva a questão de saber se o Ministério Público tem o direito de fazer investigações criminais ou se isso é exclusivamente caso de polícia. Quem mais perto chegou disso foi o Estado de S.Paulo (9/5, pág. A 10), na suíte sobre uma polêmica decisão da segunda turma do Supremo, acolhendo recurso de um delegado do Distrito Federal contra sentença do Superior Tribunal de Justiça.
A decisão puxa o tapete, por exemplo, dos procuradores que, depois de investigação própria, denunciaram seis membros do que denominaram "quadrilha organizada estável" ? os alegados responsáveis pelo esquema de extorsão na Prefeitura de Santo André na gestão do petista Celso Daniel, morto em janeiro do ano passado.
Para o ministro Nelson Jobim, a Constituição dá ao MP o poder de requisitar diligências e mandar instaurar inquéritos, mas não o de conduzi-los. Essa interpretação foi aplaudida, na matéria do Estado, entre outros, pelo advogado Ricardo Tosto, que coordena a defesa de Paulo Maluf no caso das contas bancárias não declaradas que ele teria na Suíça e na ilha britânica de Jersey.
Já o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Luiz Antonio Marrey, considera a decisão "um grave retrocesso na luta contra a corrupção e o crime organizado, pois há casos em que a polícia não tem a mesma independência e as garantias do MP".
O assunto é pesado ? e da maior importância.
Jogando conversa fora
No dia 5/5, 32 donos e representantes das maiores empresas de mídia do país foram ao Palácio do Planalto a convite do governo para ouvir do presidente Lula um pedido: ajudem a promover um amplo debate nacional sobre as reformas da Previdência e da ordem tributária. E colocou a sua equipe à disposição da mídia para esses debates.
De duas, uma. Ou o presidente juntou o baronato da comunicação no Brasil para pedir-lhe, sem dizê-lo com todas as letras, que dê uma força aos projetos do governo, numa tentativa de lobby disfarçado, ou para pedir que as suas publicações e emissoras façam o que já vêm fazendo ? jornalismo.
O debate que o governo diz querer está quase todo santo dia no noticiário, com as diferenças inevitáveis de amplitude e qualidade, sem que jornais, revistas, estações de rádio e TV e sítios na internet precisem "promover" o que seja. Pela simples razão de que aposentadoria e impostos são notícia de grande interesse público.
Aliás, uma pesquisa do Ibope, dos primeiros dias de maio, mostra que a grande maioria dos brasileiros está a par das reformas e é favorável a elas.
O que o governo precisa é afiar ao máximo os seus argumentos em relação aos pontos mais polêmicos das mudanças. Não será por falta de divulgação do que o Planalto pretende que as suas propostas irão para o brejo.
Coisas que se perguntam
Todo mundo correu para entrevistar o procurador da República no Rio de Janeiro Joaquim Benedito Barbosa Gomes assim que se confirmou que ele seria o negro que Lula decidira nomear para o Supremo Tribunal Federal ? ou, como ele prefere, que a sua indicação "tem uma grande significação de natureza emblemática".
O Estado (8/5, página A 9) juntou perfil e entrevista numa peça única. O perfil, que antecede o breve pingue-pongue com o indicado, descreve a sua história e assinala, no fecho, que ele deverá ser não apenas o primeiro ministro negro do STF, mas também o de origem mais humilde.
O diabo é que a terceira pergunta da entrevista é "O senhor tem origem humilde?". E a quarta e última: "Como o senhor venceu na vida?" Uma coisa e outra já contadas na matéria ? da mesma autora.
Para manter o nível dessas altas indagações, só faltou ela lhe perguntar quantos anos tem. Aliás, a rigor, deveria, porque o perfil, onde se lê que Barbosa Gomes resolveu ir para Brasília, aos 16 anos, para estudar e trabalhar, e que há 19 anos ele tomou posse como procurador da República, não presta ao leitor o serviço elementar de informar a idade do perfilado. O doutor tem 48 anos.
Troca-troca
Não há dois jornais que estejam de acordo sobre todos os números do vaivém dos políticos pelos partidos. O tamanho das bancadas na Câmara, em conseqüência, pode aumentar ou diminuir conforme o jornal ? ou conforme cada matéria em um mesmo jornal.
Não diga!
O assessor especial da Presidência, Frei Betto, acaba de fazer uma estrepitosa descoberta. Ouvido pela Folha (10/5, pág. A 13) a propósito das críticas ao Programa Fome Zero, a que está ligado, o dominicano filosofou: "Quando as coisas apresentam uma falha, e falha é humana, todo mundo faz manchete, mas, quando as coisas são altamente positivas, ninguém dá".
Algum dos seus muitos amigos jornalistas deveria informá-lo da metáfora do cachorro que morde homem e do homem que morde cachorro.