Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um resgate programado

CASO DA SOLDADO LYNCH

Tanira Lebedeff, de Los Angeles

Vivemos numa Matrix. Segundo os irmãos Wachowski, criadores da trilogia, vivemos plugados numa matriz, comandados por um programa de computador que nos diz em que acreditar. Uma bela metáfora. Andamos muito “pré-ocupados” com tarefas mundanas para sermos criativos e ler nas entrelinhas. A Matrix é poderosa, e a maioria, é verdade, acredita no que ela prega.

Foi no dia 1? de abril, o Dia dos Bobos, ou “April?s Fool” como a data é chamada por estes pampas. Pouco mais de uma semana depois de ser capturada numa emboscada no deserto iraquiano, a soldado Jessica Lynch foi resgatada do hospital onde estava detida como prisioneira de guerra. Toda a ação foi capturada por sofisticadas câmeras de raios infravermelho. Dizem, um resgate audacioso, feito sob uma chuva de balas. Dizem, uma missão delicada, já que Lynch tinha vários ferimentos provocados por tiros e facadas, e teria apanhado em sessões de interrogatório.

Mas agora médicos do hospital onde ocorreu a ação cinematográfica, em Nasiriya, no Iraque, estão dando sua versão da historia. Segundo reportagem da BBC em Londres, Jessica Lynch teria recebido o melhor tratamento possível enquanto esteve hospitalizada, com direito a enfermeira exclusiva para ela ? tratamento VIP, considerando as condições precárias do sistema de saúde iraquiano. O médico Harith a-Houssona, que examinou a soldado, conta que ela tinha fraturas num braço e numa perna e um tornozelo deslocado ? nenhum sinal de ferimento a bala, nada além do que seria considerado “normal” num acidente de carro.

Segundo a reportagem, as forças iraquianas já tinham deixado o hospital. As forças americanas, portanto, não teriam encontrado resistência alguma durante o “resgate”. O médico Anmar Uday, que também trabalha no hospital, contou à BBC que soldados americanos agiam como se estivessem em um filme à la Sylvester Stallone. “Eles gritavam ?go, go, go?, ao som de explosivos.”

A historia que nos venderam pela TV foi outra.

A rede de TV NBC já está produzindo um filme sobre o “dramático” e “heróico” Resgate da recruta Lynch. Jessica Lynch, que se alistou no serviço militar para poder estudar, virou “heroína” entre americanos que apóiam a intervenção militar, mas não entende bem por quê. Jessica sofre uma severa crise de amnésia e não lembra do que aconteceu na emboscada do dia 23 de marco, em que nove de seus companheiros foram mortos. Recupera-se da odisséia que protagonizou involuntariamente numa cidadezinha do estado da West Virginia, chamada Palestina.

Continuo preferindo o primeiro filme da trilogia, mas Matrix Reloaded é um espetáculo visual. Traduzir para as telas o que os irmãos Wachowski vislumbraram no roteiro exigiu muito engenho, trabalho árduo de uma talentosa equipe de graphic designers. Com o computador, hoje, é possível recriar seres humanos com perfeição, permitindo que personagens desafiem as leis da física. Ciente do poder que tem, o coordenador dos efeitos visuais de Matrix, John Gaeta, chegou a escrever carta ao então presidente americano Bill Clinton, em 1999. “Acho que a TV americana virou uma máquina de propaganda”, foi o que ele disse numa entrevista que fiz para a revista Set.

Um trecho da entrevista

Isso te preocupa, ser capaz de reproduzir um ser humano com perfeição no mundo virtual?

John Gaeta ? Eu sei o que podemos fazer tecnologicamente e sei que esses processos podem recriar com precisão os detalhes da pessoa que você quer simular. Acho que é bom estar alerta quanto ao mau uso disso, com objetivos que não sejam o entretenimento. Há coisas maravilhosas que podem ser feitas com essas técnicas… Mas sabe quanto gastamos criando esses humanos virtuais? Alguém com o propósito errado, numa posição de poder poderia investir esse dinheiro, que não é muito mesmo, e desenvolver essa técnica. Sabe, podem distorcer a realidade, para revisão histórica, e poderia ser qualquer pessoa nos dias de hoje. A TV poderia ser a maior invenção de todos os tempos com respeito à comunicação. Tem tido efeito positivo no que se refere a possibilitar que culturas se comuniquem, mas também tem tido efeito desastroso enquanto distorce a realidade. Acho que hoje nos EUA a TV é mais perigosa que positiva. É uma máquina de propaganda. Mas poderia ser o oposto, ser uma máquina da verdade. É tudo uma questão de saber como usar, de se auto-policiar. As coisas vão mudar nos próximos 20, 30 anos, haverá métodos mais sofisticados para criar eventos falsificados. Devemos discutir isso.

Foi isso que você escreveu numa carta ao ex-presidente Bill Clinton?

J.G. ? Eu nunca esperei receber uma resposta, a propósito. Dizem no site (da Casa Branca) que eles respondem a algumas cartas, mas acho que nunca o fazem. Acho que o resultado é ter seu nome na lista de todas as agências de inteligência do governo… Eu disse que estava consciente de que podia recriá-lo. E que no futuro alguém poderia usar essa tecnologia com o propósito errado. “O que você acha?”, foi o que escrevi. Acho que Clinton deve ter uma opinião bem formada a respeito, mas acho que ele nunca leu a carta.

(*) Jornalista