Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um réquiem para as aspas

APURAÇÃO & EDIÇÃO

Claudio Julio Tognolli (*)

Karl Jaspers costumava dizer que quando se perguntava, em Heidelberg, sobre quais eram os nomes dos quatro evangelistas, a resposta que vinha era: "Mateus, Marcos, Bloch e Lukács". Pois é vinda do velho evangelista do marxismo, o magiar Gyorgy Lukács, a talvez mais pertinente análise estética do século: o que fica de uma época, referia, é a forma, e não o conteúdo. Comentando A Alma e as Formas, de Lukács (1991), escreveu o finado e refinado José Guilherme Merquior: "Forma por sua vez significa a marca estética de tais significados enquanto opções existenciais, de modo que as obras literárias se tornam símbolos de gestos morais. A forma junta os fragmentos da vida em estruturas de significado moral (Sinngebilde)".

Mas o que isso tem a ver com a crítica de mídia? Tudo, e mais um pouco. O leitor de jornais, e de revistas sobretudo, estará lembrado que as frases entre aspas, em que o entrevistado mostra a que veio, parecem ter sido faladas no mesmo estilo da escrita de todo o resto da publicação. Quem fala à Veja, por exemplo, aparece nas páginas como um rematado doutor naquele estilo de escrever. Quem falava ao finado Notícias Populares, por exemplo, fosse ministro, padre, açougueiro ou doutor, aparecia com as "deixas" iguais ao estilo populo-fastidioso da publicação.

Nossa mídia ? como a de todo o mundo ? é pródiga em adequar a feição mais insinuante das pessoas (seus tremores verbais, cacoetes etc) à forma ou estilo de linguagem do meio. Ministro gaguejou na hora de explicar problemas com o FMI (segundo Freud, o ato falho é o único que realizamos com extremo sucesso), a tropeçada não vai aparecer. Nem na TV. Tudo fica asséptico, hospitalar. A ordem é limar as variantes da forma de cada um à ortodoxia formal que é a frase entre aspas. Isso não está em Lukács, tão-somente: estará também na obra Os níveis da fala, do professor Dino Pretti ? um genial estudo sobre as falas características dos personagens dos romances brasileiros clássicos, sobretudo os do bruxo do Cosme Velho.

Ctrl C + Ctrl V

O problema não é novo: em 1923, uma cidadã chamada Gertrude Stein quis publicar o seu romance Three Lives. Ali, uma escrava negra, de nome Melanchta, aparecia repetindo a mesma frase, com variações na ordem dos vocábulos, por cinco páginas seguidas. O editor censurou. O que acabou rendendo para Stein um belíssimo estudo sobre a ecolalia, afecção nervosa que leva as pessoas, como num eco, a repetirem a mesma frase, com alterações na ordem das palavras.

Toda essa questão não é meramente estética: é importante para o leitor ou ouvinte ou telespectador saberem que o ministro abaixou o tom de voz, ou tremeu nas bases, quando ia explicar um assunto delicado. Porque, se crermos sincera essa linha de raciocínio, a forma falará mais do que o conteúdo. Quem não se lembra de o ministro Bresser Pereira querer explicar, sob Sarney, e gaguejante, uma inflação impagável, nos dois sentidos do termo, com pérolas como "não há inflação no Brasil, há apenas a depreciação relativa de preços relativos"?

Está cabendo a algumas produtoras independentes de TV, na Europa e EUA, e a algumas revistas ou fanzines, todos desconhecidos da grande mídia, o trabalho de resgatar a originalidade do entre aspas. Alguns desses documentários já pipocam por aqui, via TV a cabo.

Da mesma forma, só agora nossas TVs estão acordando para o fato de que, em grandes edições, as falas são degravadas ou decupadas por escrito. As imagens são, pois, editadas a partir de uma edição de texto escrito, não falado. Essa é a bola da vez lá fora. Documentários são tradicionalmente editados por aqui en bloc: fulano fala tudo o que tem de falar, e não aparece mais no vídeo, ou no texto. Enquanto, pela nova linha de se editar, fulano aparece pipocando em várias cenas e distintos subtemas e tempos do documentário. O que pauta a linha de edição são os temas, não os personagens blocados.

De tudo isso, sobra uma coisa: as novas tecnologias trouxeram informação mais rápida. Mas a internet, com toda a sua liberdade de espaço e edição, em que os deuses são as conjunções de "Ctrl C + Ctrl V", comete as mesmas clássicas imperfeções do resto da mídia: edita reportagens em blocos de personagens, não em temas abordados por personagens.

"Os mesmos leitores"

Não h&aaacute; de se esperar muito de um complexo em que TV vira revista, revista vira TV, jornal vira internet, e internet vira todo o resto junto. Que não se espere, pois, filigranas estéticas nesse liberou geral.

A melhor detecção disso está nesse extrato de Umberto Eco, intitulado "O diário torna-se semanário" (Cinco Escritos Morais, Record, 1999, p. 62-66):


"Nos anos 60 os jornais não sofriam tanto a concorrência da televisão. Apenas Achille Campanile, em uma conferência sobre a televisão em Grosseto, em setembro de 1962, teve uma intuição luminosa: antes os jornais eram os primeiros a dar a notícia e só depois as outras publicações intervinham para aprofundar a questão; o jornal era um telegrama que terminava com: ?Segue carta?. Assim, em 1962, a notícia era dada à oito da noite pelo telejornal. O jornal da manhã seguinte dava a mesma notícia: era uma carta que terminava com: ?Segue, ou melhor, procede telegrama?.

Por que só um gênio da comédia como Campanille se deu conta dessa situação paradoxal? Porque na época a TV era limitada a um ou dois canais considerados pró-regime e, portanto, não era considerada ( e em grande parte realmente não o era) confiável como fonte; os jornais diziam mais coisas de de maneira menos vaga; os cômicos nasciam do cinema ou do cabaré e nem sempre aportavam na TV; a comunicação política acontecia na praça, cara a cara, ou através de cartazes ns paredes: um estudo sobre o telecomício nos anos 60 apurou, através da análise de numerosas tribunas políticas, que, com a intenção de adequar suas propostas à média dos espectadores televisivos, o representante do Partido Comunista acabava por dizer coisas muito semelhantes às que dizia o representante da Democracia Cristã, ou seja, anulavam-se as diferenças e cada um tentava parecer o mais neutro e tranquilizador possível. Portanto, a polêmica, a luta política, acontecia alhures e, na maior parte das vezes, nos jornais.

Depois houve um salto, quantitativo (os canais multiplicavam-se cada vez mais) e qualitativo: até mesmo no interior da TV estatal diferenciavam-se três canais orientados politicamente de modos diversos; a sátira, o debate aceso, a fábrica dos grandes furos de reportagem passou a ser a televisão, que ultrapassou até mesmo a barreira do sexo, de forma que alguns programas das onze da noite tornaram-se muito mais audazes do que as monásticas capas de Espresso ou Panorama, que não iam além da fronteira dos glúteos. Ainda no início dos anos 70, lembro-me que publicava uma resenha sobre os talk-shows americanos, como espaços de uma conversação civil, espirtuosa, que conseguia manter os espectadores vidrados na telinha até tarde da noite e propunha que se fizesse o mesmo na televisão italiana. Depois o talk-show começou a aparecer, cada vez de maneira mais triunfal, nos vídeos italianos, mas, pouco a pouco, tornou-se local de enfrentamentos violentos, às vezes até físicos, escola de uma linguagem sem meios-termos (honrando a verdade, uma evolução do gênero aconteceu parcialmente também nos talk-shows de outros países).

Assim, a televisão tornou-se a primeira fonte de difusão de notícias, e para as publicações diárias abriram-se apenas dois caminhos: do primeiro caminho possível (que definirei por ora apenas como ?atenção alargada?) falarei depois; mas acho que posso afirmar que a imprensa seguiu, na maior parte dos casos, a segunda via: ela ?semanalizou-se?. O diário tornou-se cada vez mais semelhante a um semanário, com o enorme espaço dedicado às variedades, à discussão de notícias de costumes, de fofocas sobre a vida política, de referências ao mundo do espetáculo. Isso colocou em crise os semanários de alta faixa (para ser mais claro, da Panorama à Epoca, da Europeo à Espresso): para o semanários sobravam dois caminhos: ou ?mensalizar-se? (mas mas já existem as publicações mensais ?sobre vela, sobre relógios, sobre culinária, sobre computadores ? com seu mercado fiel e seguro), ou invadir o espaço da fofoca que já pertencia,e continua a pertencer, aos semanários de faixa média, Gente ou Oggi, para os apaixonados por casamentos principescos, ou de faixa baixa, Novella 2000, Stop ou Eva Express, para os devotos do adultério espetacular e os caçadores de seios descobertos na intimidade dos banheiros.

Mas os semanários de alta faixa só podem descer para a faixa média ou baixa em suas páginas finais,e o fazem ? de fato, é ali que devemos procurar seios, amizades coloridas e casamentos. Por um lado, ao fazê-lo, perdem a própria imagem junto de seu público; quanto mais um semanário de faixa alta aflora a faixa média ou baixa, mais ele conquista um público que não é o seu público tradicional e caba não sabendo mais a quem se dirige e entrando em crise; aumenta a tiragem e perde e identidade. Por outro lado, os semanários recebem um golpe mortal dos suplementos semanais das publicações diárias. Haveria apenas uma saída: tomar a via das publicações semelhantes às que, na América, se dirigem a uma camada social alta, como o New Yorker, que oferece ao mesmo tempo a lista de espetáculos teatrais, quadrinhos de alto nível, breves antologias poéticas e pode publicar também um artigo de cinquenta páginas datilografadas sobre uma grande dama da editoria, como Helen Wolf. Ou poderia tomar o caminho da Time ou da Newsweek, que aceitam falar de acontecimentos que já foram comentados pelos jornais ou pela TV, mas fornecem resumos especializados ou dossiês de vários autores aprofundando a análise desses mesmos acontecimentos. Cada um deles exige meses de programação e trabalho, e um documentação controlada nos mínimos detalhes, de forma que é raro que tais semanários publiquem desmentidos referentes a dados de fato. Por outro lado, também um artigo para a New Yorker é encomendado meses e meses antes, e de depois é considerado inadequado o autor recebe igualmente (e muito bem) o combinado e o artigo é jogado fora. Esse tipo de semanário tem custos altíssimos e só pode existir em um mercado mundial de língua inglesa, e não para o mercado restrito de língua italiana, onde os índices de leitura não são nada reconfortantes.

Portanto, o semanário esforça-se para seguir a publicação diária, pela mesma estrada, e cada um tenta superar o outro para conquistar os mesmos leitores. Isso explica porque a gloriosa Europeo fechou, Epoca está buscando um caminho alternativo sustentando-se com lances televisivos e porque a Espresso e a Panorama lutam para diferenciar-se: elas o fazem, mas cada dez o público percebe menos. Freqüentemente, encontro conhecidos, alguns bastante cultos, que me cumprimentam pela seção que escrevo toda semana na Panorama e asseguram com adulação, que compram a Panorama, e só a Panorama, exclusivamente para lê-la."


(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor do Unifiam (SP) e da ECA-USP, e consultor de jornalismo investigativo da Unesco no Brasil