Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um sistema para empresas de negros

POLÍTICA DE COTAS

Ítalo Ramos (*)

Pode ser que eu, por motivos óbvios, não esteja sendo isento, imparcial; mas, embora tenha me esforçado, ainda não consegui estabelecer uma ligação entre o caso de fraude do New York Times e a etnia do seu personagem principal, Jayson Blair, nos termos colocados pelo colunista Howard Kurtz, do Washington Post. E alguns outros. Para ligar fraude e etnia, a argumentação de Kurtz gira em torno da seguinte pergunta: "Será que um jovem jornalista branco, que viesse cometendo a mesma ação enganosa de Blair, teria conseguido manter-se no emprego?" A minha resposta é, definitivamente, sim. A ligação que o colunista faz é tão falha quanto oligofrênica, no mesmo quilate das que estão apontando o jornalista malandro como um "monstro criado pela ação afirmativa".

Blair, o repórter negro que inventou histórias, apropriou-se do trabalho de outros colegas, foi flagrado e demitido, pode ter ingressado naquele prestigioso jornal por uma "indulgência" (como muitos querem) da ação afirmativa. Mas a análise desse escândalo não se esgota aí.

É claro que o NYT precisava completar a cota de negros na sua equipe de jornalismo. Também é verdade que um dos seus editores, em sendo igualmente um negro, foi leniente na aplicação de medidas punitivas, já que Jayson era um reincidente. Mas o jornal não foi buscar esse repórter num reformatório para adolescentes delinqüentes. Também ele não surgiu, lotericamente, de um Big Brother, sorteado com o prêmio de um emprego de repórter.

Quando Jayson começou a aparecer na redação com notícias bombásticas, todos adoraram; melhor ainda: todos o adoraram. Estavam sendo indulgentes? Não, a verdade é que ele sabia "esquentar" uma matéria, sabia onde encontrar material necessário para causar sensação e, assim, com raro talento, vender jornal. A sua representação na cota da redação já estava preenchida e ele não foi promovido, recentemente, para a Editoria Nacional, um lugar destacado, por ser negro, mas porque o resultado do seu trabalho coincidia com a ambição do NYT de se sobrepor aos concorrentes; aliás, uma orientação empresarial seguida pelos jornalistas por zelo profissional, mas, também, por instinto de sobrevivência. Então, em meu julgamento, um jovem jornalista branco, também amoral e simpatizante do logro, seria tolerado e se manteria no emprego, até que o escândalo estourasse.

O estabelecimento de ligações mentalmente fracas, envolvendo a ação afirmativa, não é algo raro, mesmo no Brasil, onde ela é recente. Vejam só: a política de cotas para o ingresso de pobres e negros na universidade pode ser estimulante para quem se envolve com ela e a debate, mas dificilmente tem alguma graça. Algumas pessoas, brancas, estão querendo mudar isso. Depois do artigo que eu assinei neste Observatório [ver remissão abaixo], essas pessoas encheram meu computador com deduções que situam o país diante da necessidade de escolher entre uma universidade de boa qualidade e a diversidade racial no ensino superior, estabelecendo uma ligação entre qualidade e etnia que é risível, além de constituir uma mistificação, a exemplo da que ocorre no caso de fraude do NYT. Elas querem dizer que se os negros ingressarem na universidade com o apoio do sistema de cotas ela jamais será a mesma, o que significaria, para os negros, ganhar as vagas, mas não levar o ensino, e, para os estudantes em geral, o aviltamento da universidade. Mas que dilema cruel é esse? Não é muita responsabilidade para uns poucos rapazes negros e pobres que praticamente nem assistiram à primeira aula?

É claro que, com o ingresso dos negros, a universidade jamais será a mesma.

Será melhor!

A universidade ideal não será alcançada em curto prazo, mas, excetuando-se um punhado de gente sem informação (ou de má-fé), é esperançoso constatar que mais ninguém, branco ou negro, deseja a continuação do modelo atual. Já se sabe ? e isso merece um brinde ? que a sociedade a deseja aberta, democrática e superlativa. Paradoxalmente, o problema está exatamente nesse desejo, cuja formulação, por parte dos brancos, tem preferido a via do improvável, hoje. Em outras palavras: todos anseiam por uma universidade ideal, mas o sistema de cotas tornaria esse ideal improvável, supostamente. Aos que pensam assim, resta indicar outra solução ? se puderem.

Agora, é a minha vez de fazer uma ligação, válida: essas pessoas devem ser as mesmas que, saudosas de um tempo não muito remoto, choram a perda de uma certa escola pública, de nível fundamental e médio de boa qualidade, chamada de "risonha e franca", designação que mais parecia um deboche. Elas não têm memória? Não conseguem enxergar que aquela escola não ria e nem se franqueava para a grande maioria da população? Já se esqueceram das mães que varavam noites nas filas das vagas? Aquela escola, que felizmente acabou, só mostrava os dentes e abria as portas para os filhos de uma classe média, em geral, apadrinhada por políticos que conseguiam as melhores vagas pela força da influência. Para o resto da população em idade escolar eram reservadas outras escolas, as que mais desestimulavam do que ensinavam. Havia, também, a "alternativa" de ficar de fora, excluído por um sistema "de ensino" que mais parecia uma conspiração diabólica. (Se alguém já está me acusando de escrever "com paixão", eu posso mudar essa última palavra. Posso escrever fascista.) Sabem como aquele sistema urdia a sua trama? Vou citar um exemplo:

Houve um tempo, em São Paulo, em que vigorou a figura do "vestibulinho", um arremedo de vestibular, destinado a filtrar crianças no intervalo do primeiro para o segundo grau. As que alcançavam as melhores notas (adivinhem quais eram?) ficavam com os melhores lugares. Desse modo, criavam-se grupos diferenciados, verdadeiros focos de excelência, de um lado, e de deterioração do aprendizado, de outro. Era assim que a escola "risonha e franca" cuidava para que as elites não se renovassem, fazendo a boa educação passar de pai para filho. O fim do "vestibulinho", promovido pelo então secretário de Educação, Carlos Estevam Martins, seguido de uma oferta maior de vagas, rompeu esse ciclo perverso. É verdade que, também por força desse rompimento, o ensino público enfrentou dias difíceis, como, de resto, sempre fez. Porém, nunca foi tão universal quanto hoje. O que nos resta, agora, é melhorá-lo ? para todos. Da mesma forma, no ensino superior, o sistema de cotas democratiza a oferta (ainda ridícula) de vagas e, assim, a universidade abandona uma província racial para fazer jus ao seu substantivo.

Agora ficou fácil identificar a falsidade daquele dilema, não é mesmo? Ele, além de falso, é cruel e ardiloso, porque põe os negros na dupla e incômoda posição de credores de vagas, mas devedores da qualidade do ensino. Segundo essa versão, a questão do negro, na universidade, é uma questão dos negros, e não um problema da sociedade.

Eu entendo que nenhum pai quer ver seu filho estudar muito, passar no vestibular e, ainda assim, não ter ingresso na universidade, decepcionar-se e perder tempo. Para aqueles que se sentirem "vítimas" do sistema de cotas, porém, segue o seguinte conselho: não façam nada! Não cedam à argumentação dos advogados que estão prometendo o apoio da Justiça, porque poderão estar jogando fora o dinheiro dos honorários. Vou explicar o porquê desse conselho.

É possível que muitos vestibulandos brancos, com notas válidas mas preteridos pelo sistema, se sintam tentados a recorrer ao Judiciário para fazer valer o que tem sido chamado, em equívoco, de "mérito". Também pode acontecer o pior; ou seja, que o STF, já chamado a se pronunciar, decida pela inconstitucionalidade daquele sistema. E, finalmente, que, de sua parte, o Congresso Nacional eternize a discussão em torno do Estatuto da Igualdade Racial, que tramita pelas suas comissões, apresentado com o objetivo, entre outros, de tornar ainda mais abrangente a política de cotas. Seria essa uma conjunção de fatores funesta para o destino da ação afirmativa brasileira? Não.

Não, porque as possibilidades listadas acima são um tanto remotas. Em primeiro lugar, o número de vestibulandos negros amparados pelas cotas não é tão grande de modo a provocar uma corrida ao Judiciário. Na verdade, os negros deram uma boa lição de "civilidade", pois o percentual desses vestibulandos diminuiu de 32,61%, em 2002, para 27,53%, este ano. Depois, se o próprio STF já adotou um sistema de cotas para compor o seu funcionalismo, por que se revelaria do contra? Por último, as comissões do Congresso são compostas de políticos, pessoas atentas ao respeitável colégio eleitoral representado pelos negros e sabedoras de que o sistema de cotas levantou a questão racial no país. Portanto, é provável, sim, que as cotas universitárias estejam aí para ficar, até que sejam desnecessárias.

Já que é assim, por que não avançar um pouco mais? E em qual direção?

Bem, entre outras providências, pode ser na direção de um justo estabelecimento de cotas para beneficiar as empresas de negros brasileiros. Assim, os governos estariam dando uma prova de vontade política, de determinação de realmente equilibrar as oportunidades entre brancos e negros na sociedade, desencorajando as iniciativas contra a ação afirmativa, e, mais: emprestando à ação afirmativa a sua verdadeira propriedade de usina de programas compensatórios.

Alguém certamente estranhará tal sugestão. "Afinal", esse alguém perguntará, "as empresas de negros são discriminadas?" Para uma pergunta inocente, uma resposta singela: sim. Para comprovar a existência de discriminação no meio empresarial, basta perguntar quantas empresas de negros já constaram da célebre relação das maiores empresas da revista Exame. É claro, todos sabemos, que essa classificação jamais foi cogitada pela revista. A Exame nunca se preocupou em incluir em sua lista a etnia dos acionistas majoritários. E por que o faria? Para quê? Vou responder.

O censo étnico da USP é recente. Até sua edição, em 2001, ninguém também havia cogitado de classificar graduandos pela etnia. Quando isso foi feito, tirou-se uma prova concreta, irrefutável, da existência de discriminação racial naquela universidade, o que um simples olhar há muito indicava. Sabe-se, hoje, que a graduação da USP se exibe com 1,34% de alunos negros, enquanto os brancos são 79,54% ? o que se deve comparar ao percentual de 34,30% de cidadãos negros na população do estado. Pois quem encarar a composição do corpo de associados da Fiesp com espírito crítico também verá algo no mesmo sentido. Para não ir tão longe, e ser acusado de "exagero", recomendo esse mesmo olhar para o Sindicato das Pequenas e Médias Empresas.

As associadas a esse sindicato são numerosas, como numerosos são os negros; também são pobres, como os negros, mas, ainda assim, seus proprietários são predominantemente brancos. Elas recebem do governo um tratamento fiscal especial, por serem fracas, assim como os vestibulandos pobres estão recebendo atenção diferenciada (uma cota de 50%). E os empresários negros não seriam tão merecedores quanto os vestibulandos negros? Portanto, uma lista étnica de uma revista como a Exame seria também uma prova da discriminação que barra o acesso dos negros ao capital das empresas. Até mesmo no âmbito dos governos, um terreno considerado isento, podem ser constatados o pequeno número de executivos e a quase total ausência de negros na diretoria de estatais.

Neste ponto é bom lembrar, mais uma vez, o caráter de circularidade da ordem social, do qual a educação, cuja base está no poder, não foge ? Pierre Bourdieu. Ele mostra o seguinte: a discriminação que sempre envolveu o vestibular e explica o número pequeno de universitários negros é a mesma que explica o número pequeno de empresários negros. Sem o concurso da educação formal é difícil vencer a timidez diante do mundo dos negócios, dispor de uma mentalidade empresarial, constituir uma empresa e administrá-la à altura de bons contratos. Se os vestibulandos brancos estão acostumados a disputar o vestibular sem a concorrência dos negros, também os empresários brancos se acostumaram a disputar licitações para obras e serviços públicos em condomínio, sem a concorrência das pequenas e fracas empresas de negros. É por isso que a extensão da ação afirmativa às empresas de negros seria uma medida do mesmo gênero e até complementar ao sistema de cotas para a universidade. "Uma violência", ousarão dizer os empresários brancos.

Pode ser, mas, hoje, nos EUA, grande número de ações na Justiça, envolvendo programas da ação afirmativa, é contra os contratos de obras e serviços públicos que incorporam cotas para beneficiar empresas de negros. É assim porque, desde que em 1989, ao examinar uma apelação procedente de Michigan, a Suprema Corte decidiu contra a ação afirmativa, foi aberta lá a temporada de caça às cotas para empresas de negros. Os brancos se organizaram, agora, para passar um trator jurídico sobre a ajuda àquelas minorias. Organizados, eles agiram em Detroit, Los Angeles, Miami, Chicago ? para citar algumas das grandes cidades em que o sistema de cotas para empresas de negros foi derrubado pelo Judiciário. Pouco tempo depois, cedendo ao mesmo lóbi, o governo Clinton ordenou revisão dos contratos da ação afirmativa, com o objetivo de apurar quais os que, "injustamente", discriminaram empresas de brancos nas licitações públicas. "Uma violência", disseram os negros.

Quando dezenas de empresas de negros já haviam falido, e essa batalha parecia perdida, a resposta dos negros, ainda que tarde, veio. Junto aos pol&iacuteiacute;ticos estaduais e municipais, eles demonstraram, entre outros fatos, que não se viam CEOs negros na lista das 1.000 maiores corporações da revista Fortune. A argumentação valeu tanto que, em 1993, o prefeito de Detroit estabelecia uma cota de 30% para o negros em seus contratos, sendo seguido pelas prefeituras de Miami, com 10%, Los Angeles e Chicago. Em quase todos as cidades, onde a Justiça derrubou a ação afirmativa, os políticos a restauraram.

Instrumento de reparação

Levantará alguém a acusação de que estou querendo importar uma disputa de mercado que é típica do racismo americano? Pois pode levantá-la. Eu estou, sim. Na verdade, estou fazendo o que os empresários brasileiros já fazem, há muito tempo, quando solicitam do governo medidas que tornem suas empresas mais competitivas. Com esses empresários, eu aprendi a não achar justo que empresas americanas, por exemplo, exportem com isenção de impostos, e as nossas, não. O apoio do governo, nesse caso, é fundamental para o crescimento dos empresários brasileiros, e ele, mal ou bem, não tem faltado. Então, por que os empresários negros não podem seguir esse bom exemplo no mercado interno?

As cotas destinadas às universidades não esgotam o problema da exclusão dos negros do sistema de ensino. Longe disso. Essa é uma questão que começa na pré-escola e persiste nos baixos índices de permanência no ensino fundamental, médio e na universidade. Não basta entrar, é preciso ter condições de concluir o curso. Portanto, para dar certo, a ação afirmativa requer abrangência, desdobramentos. Mas, para concluir, voltemos ao conselho dado às "vítimas" do sistema de cotas da universidade: Bem, toda vez que alguém, defendendo um privilégio, se arma com a justiça, precisa tomar cuidado, porque pode estar a um passo da injustiça. Aqueles vestibulandos brancos e seus pais devem resistir à tentação de derrubar as cotas, judicialmente. Com o apoio dos juízes, eles podem atrasar, sim, um processo que se anuncia irreversível, mas também vão perder tempo, dinheiro e, no futuro, (quem sabe?) envergonhar-se da ação, digamos, insocial.

Para completar: é difícil debater a ação afirmativa ou a política de cotas para negros na universidade sem um mínimo de organização. Um detalhe que merece comentário: parece que coube justamente aos professores a iniciativa de falar mal da política de cotas. Estranho (não?), pois o professorado é composto das pessoas que cuidam mais de perto da educação. A estranheza está no fato de eles ? os que publicaram opiniões ? terem dois fatores em comum:

1) Embora familiarizados com as mazelas da educação, não apresentam uma só alternativa à política de cotas (quem, então, conseguirá?);

2) Estão todos amarrados à improvável melhoria do ensino fundamental e médio, o que parece exigir um milagre. Ora, a política de cotas levantou a questão racial (não só essa) no país, é verdade, mas as pessoas que estão escrevendo contra ela precisam saber, pelo menos, do que estão tratando.

3) Todos os dias, o professor José de Souza Martins acorda, veste o seu terno e sai para a escola, sonhando com um sistema de ensino que não vai encontrar, porque utópico, distante da realidade brasileira e, portanto, inalcançável. Como ele, vários professores se depararam com o sistema de quotas para o ingresso de negros na universidade e, sem saber o que fazer da perplexidade, não aprovaram a idéia. Depois de séculos de inação, alguém tinha feito alguma coisa, sim; mas, e o sonho? O novo sistema não preenche o imaginário, pois não resgata todas as vítimas (a sociedade brasileira) dessa "fábrica de injustiças sociais" que é a "decadente qualidade do ensino" ? como se isso fosse possível. Então, não presta. E ele escreveu um artigo para a Folha, sentenciando que "a porta dos fundos não fará justiça a ninguém". Que frase infeliz, professor!

O sistema de cotas que, para ele, é uma "porta dos fundos", para os negros é um instrumento de reparação destinado a combater a porta de serviço, o elevador de serviço, para onde os brancos brasileiros sempre encaminharam os negros, enquanto se diziam liberais. Trata-se, aí, de um ponto de vista daquele professor? Pode ser, mas é preciso tomar cuidado, porque, para muita gente má, o mal também pode ser um ponto de vista.

Para os pobres

Não estou pinçando uma frase do professor, analisando-a fora de seu contexto. É o seu artigo que está fora do contexto. Um exemplo: Ele escreve que "os alunos que são barrados no vestibular não o são por sua cor." É verdade. Os barrados no vestibular são brancos, a maciça maioria dos que chegam lá. A maioria dos negros é barrada muito antes. Ele professa: "É preciso construir o futuro, que não existirá enquanto houver vítimas." Segundo ele, as "vítimas" são "a sociedade inteira". Sim, concordo; mas, então, o quê? Os negros devem esperar pela construção do futuro? Quem construirá esse futuro? A USP, onde ele ensina, esteve sendo construída desde a década dos anos 1930. Para quem?

4) Fernando Campos, de Salvador, sugere, neste Observatório, que os militantes dos movimentos negros se dirijam à periferia das cidades para pregar sobre o significado e a importância das ações afirmativas. Será que alguém, numa periferia tão distante do vestibular, vai esquecer o desamparo e a fome, parar a luta pela sobrevivência moral e física, para ouvi-los? Não, porque, como ele mesmo escreveu, "o estômago vem em primeiro lugar". Os movimentos negros não partem de igrejas evangélicas, esses prodigiosos templos capazes de, na área da comunicação, humilhar, matar de inveja, os melhores diplomados. Também não reúnem os mesmos recursos financeiros, nem a mesma experiência de distribuição de alimentos e conforto espiritual.

Ah, o professor não sabe, mas os movimentos negros, como o nome diz, são negros. Eu não conheço um só capaz de movimentar multidões famintas. Alguns líderes comunitários conseguem ser ouvidos nas favelas, mas eles estão falando sobre como suprir carências muito diferentes. professor, não é uma contradição escrever que alguns dos seus alunos vão à escola pela merenda e, em seguida, pretender que pais e irmãos mais velhos, que não têm merenda, prestigiem uma palestra sobre o ensino superior? O racismo é uma doença insidiosa, da qual o principal grupo de risco são as pessoas brancas, ricas e de classe média. É para essas, necessitadas de tratamento, que os negros devem pregar.

Ele lamenta que os negros queiram uma compensação já, porque "ninguém pensa a médio e longo prazos". Como assim? Quantos outros séculos ele quer que os negros esperem? Respeite o contexto, professor.

Um engano: o citado professor aconselha os negros a lutarem pela melhoria da escola pública, afirmando que "esse é um jogo ganho". Como a Folha publicou isso? Assim não me parece. Vejam bem: ela, a luta pela melhoria, tem o apoio maciço dos professores. Só no estado de São Paulo eles são mais de 200 mil, organizados em sindicatos, associações, grêmios e capazes de mobilizações invejáveis, tais como promover greves, comícios, passeatas. Todos eles, sem exceção, são fervorosos defensores da tão desejada melhoria do ensino público. Uma unanimidade! Já conseguiram? Não se nega que tenham obtido importantes conquistas, mas o jogo está longe da vitória. Os movimentos negros, igualmente, fizeram muito por essa causa: com a gritaria em torno das cotas, levantaram, também, a discussão pela necessidade de a escola pública melhorar.

5) Depois de ralar 25 anos como profissional especializado em Economia, o professor Antônio Fernando Beraldo teve de me dizer que o ICMS é um imposto estadual. Mas eu assisti ao seu nascimento (em substituição ao malfadado I.V.C.)! E, depois de ralar três anos como secretário de Comunicação da Assembléia Legislativa de São Paulo, analisando, para resumir e divulgar, os trabalhos da Constituinte de 89, tenho de ler que "a lei pune", o que nem sempre é correto. Eu jamais escrevi que o ICMS mantém universidades federais. Ao contrário, eu citei, sim, as três universidades paulistas, com o percentual e o valor em reais que lhes foram atribuídos em 2002. E não apontei números redondos como 10, 20 ou 30%; ah, não, eu escrevi 9,75%. De onde eu tirei essa exatidão toda?

Ele segue afirmando que "apesar" da minha argumentação, continua achando que a política de cotas deveria ser para os pobres. Ele também não leu a lei! Professor, são duas as cotas: uma, de 50%, para os pobres; outra, de 40% para os negros. A primeira tem o privilégio da aplicação. Só depois de preenchidas as vagas dos pobres é que a cota dos negros é considerada.

As voltas do mundo

6) Neste Observatório, Humberto Crivellari começa escrevendo: "…lei, resolução, sei lá o que determina as cotas para os negros…" Ele não sabe que é uma lei, porque, provavelmente, não a leu. Depois, continua: "…a gente fica do lado do último que falou." Então, não consegue extrair uma opinião própria? Finalmente, afirma: "…tem razão quem é contra e quem é a favor". Como?

7) Paulo Lustosa, referindo-se ao novo ministro, negro, escolhido para o STF, se proclama contra "atribuírem cotas para os altos cargos da República". Como assim? O STF tem um regime de cotas para o seu funcionalismo (20%) e ele, Lustosa, não proclamou nada contra isso. Então, para o funcionalismo pode; mas, para ministro, não? Por quê? Para justificar a sua opinião, cita o Colin Powell e a Condoleezza Rice, afirmando que eles não chegaram à Casa Branca por meio de cotas. Bem, ele não sabe que o Bush se pronunciou contra a política de cotas da Universidade de Michigan e pediu ao Powell e à Rice que o apoiassem. Pois os dois ? que não têm prestígio junto aos negros americanos ?, publicamente, reafirmaram lealdade ao presidente, mas explicaram que são a favor das cotas, porque, "…sem a ação afirmativa não teríamos chegado aonde chegamos em nossas carreiras". Ora, a Casa Branca não tem cotas, mas sem elas também não teria aqueles dois. Recomendo ao Lustosa a leitura do depoimento de Arlie O. Petters, importante astrofísico, publicado no New York Times de sexta-feira, dia 30, expressando o poder da ação afirmativa.

8) Na Veja, o Diogo Mainardi escreve um artigo equilibrado (ele sente o preconceito em carne própria), mas sugere que, para resolver o problema do racismo no país, o critério de raça (raça?) deveria ser abolido. Como assim? No Brasil, foi com a política de cotas, imposta em 2003, que o critério de raça foi praticado pela primeira vez para o lado dos negros, depois de mais de um século de abolição. Ele tem poucos meses de aplicação e já deve parar? Não é fingindo que o racismo não existe que se vai criar igualdade.

9) Não deixa de ser irônico que os jornais se fartem, hoje, de publicar o nome do brasileiro Sérgio Vieira de Melo, exaltando a sua contribuição para a guarda dos direitos humanos, na mais alta posição do Secretariado para Direitos Humanos, da ONU. A diplomacia em pessoa, ele entende muito de intervenções humanitárias e já há quem fale no seu nome para secretário-geral, com o que estaria fazendo o mesmo percurso de Kofi Annan. Ninguém há de negar que seu trabalho seja elogioso, principalmente pelo que foi feito no Timor Leste, em termos de administração humanitária.

Mas a ironia está no fato de que ele deve ser descendente de outro Vieira de Melo, de nome Bernardo, o seu oposto. Este, pelos idos de 1600, foi o mais sanguinário auxiliar do paulista Domingos Jorge Velho, o famoso capitão-do-mato que exterminou a comunidade do Quilombo dos Palmares, servindo-se, inclusive ? talvez pela primeira vez na história ?, de armas biológicas. Seguindo uma sugestão de Vieira de Melo, Domingos foi de São Paulo a Alagoas, a pé, recolhendo das fazendas que percorria os escravos com doenças infecciosas. Abandonou-os em Palmares e esperou cinco anos. Foi assim que os dois conseguiram debilitar, invadir e destruir o quilombo, uma comunidade livre, socialista, com cultura, língua e religião próprias, que desafiou Lisboa por quase 100 anos.

O mundo dá muitas voltas, não?

(*) Jornalista

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