VEJA CONDENADA
Luiz Egypto
A seção "Cartas" da revista Veja (edição 1.825, 22/10/03) traz, na pág. 26, um box com o título "Nota pública de esclarecimento". Para cumprir "determinação unânime da 5? Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em acórdão proferido na Apelação Cível n? 7000.5597646", o texto, de 36 linhas em duas colunas, informa que a Editora Abril foi condenada a indenizar por danos morais a advogada Maria Beatriz Dreyer Pacheco. O motivo da ação está na matéria "Dormindo com o inimigo", publicada na edição n? 1.570 (28/10/98, págs. 114-121). A nota dá notícia da sentença, mas não explica os fundamentos da ação movida por Maria Beatriz, residente em Porto Alegre.
A advogada gaúcha é uma das personagens da matéria publicada cinco anos atrás. Sua foto, e de outras 11 mulheres, saiu na capa da revista ? cuja manchete era "Peguei AIDS do meu marido", seguida do olho "Histórias dramáticas de mulheres que foram contaminadas pelos homens em quem confiavam cegamente".
A reportagem de Veja alertava para o número crescente de mulheres casadas e infectadas com o vírus HIV por seus maridos. Derrubava, assim, o mito dos chamados "grupos de risco", mostrando que o perigo existia também nas relações monogâmicas, dentro de casa. Os depoimentos davam o tom de aproximação com o leitor: algumas mulheres contavam como descobriram estar infectadas e, outras, o que sentiram com relação aos parceiros.
Embora aparecesse na capa, nenhum dos depoimentos incluídos na matéria era de Maria Beatriz. Apenas sua foto foi divulgada pela revista e, no miolo, os seguintes dados: "Maria Beatriz Dreyer Pacheco, Porto Alegre, 49 anos, advogada, 4 filhos. Ano do diagnóstico: 1997". Nada do que ela disse em sua entrevista à revista foi usado no texto ? fato que não é incomum numa reportagem jornalística, em especial as de apuração exaustiva, quando muitas informações são cortadas por falta de espaço ou por não se ajustarem ao texto final.
O problema, neste caso, foi que Veja publicou a imagem e o nome de Maria Beatriz mas não contou sua história. Segundo disse a advogada a este Observatório, à época ela foi procurada por uma repórter para ser ouvida numa matéria sobre mulheres com AIDS. Até aí, tudo bem: Maria Beatriz nunca escondeu que é soropositivo. Trabalha na ONG Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS ? Núcleo Porto Alegre e presta assistência jurídica a pessoas demitidas de seus empregos por serem portadoras do vírus. Mas, segundo ela, sua própria história com o HIV não é nada dramática.
"Sou uma mulher com AIDS e não tenho problema nenhum em mostrar isso. O que quero passar para as pessoas é que é possível ser feliz com o vírus", afirma. A imagem que Maria Beatriz quer transmitir é positiva e condiz com o trabalho que realiza em Porto Alegre. E por isso ela não concorda com a exploração da "AIDS-tragédia" ? como define o tema da matéria de Veja.
O porquê
A advogada foi casada por quase 30 anos com o pai dos seus filhos. Depois da separação, viveu com um companheiro de quem contraiu o HIV. Seu companheiro havia sido infectado em uma transfusão de sangue. Ele morreu no final de 1993 sem saber que tinha AIDS. A causa mortis então declarada foi "cirrose hepática". Maria Beatriz só descobriu que tinha o vírus quatro anos depois. Hoje, vive com seu terceiro companheiro. Estão juntos há oito anos e ele não contraiu a doença.
Logo após a publicação da matéria, em 1998, a advogada pediu uma retratação à revista. Uma pequena nota foi publicada na seção "Cartas". Ela não ficou satisfeita.
Para Maria Beatriz, a matéria ofendeu a memória de seu companheiro morto. Primeiro pelo tom dramático do texto, a começar pelo título: ela nunca considerou que ele fosse "o inimigo". "Cada um tem sua parcela de responsabilidade nessa história", afirma. Depois, porque, do jeito que foi publicada, a matéria dá a entender que todas aquelas mulheres que apareciam nas fotos possuíam a mesma e trágica história. Não é o caso de Maria Beatriz.
Para colocar mais lenha no fogaréu, o departamento de promoção da Veja veiculava semanalmente, em várias cidades, outdoors com as capas da revista. A mãe de seu primeiro marido não sabia que a ex-mulher de seu filho tinha AIDS. Viu a foto da advogada na capa e, como a matéria não trazia explicação alguma sobre como ou por quem ela havia sido infectada, criou-se uma tremenda confusão. O ex-marido de Maria Beatriz chegou a ameaçá-la com uma ação criminal.
Confusão armada, a advogada não pensou duas vezes e processou a Editora Abril, responsável pela publicação de Veja. "Não fiz isso pelo dinheiro, mas para incomodar uma grande empresa é preciso mexer no bolso dela", diz.
Em sentença proferida em 7/10/99 pela juíza Dudith dos Santos Mottecy, da 6? Vara Cível de Porto Alegre, a Abril foi condenada a pagar indenização equivalente a 200 salários mínimos a Maria Beatriz; e a publicar, na Veja, uma nota de esclarecimento aos leitores ? o que foi feito na edição desta semana. Só faltou à revista esclarecer o porquê da acusação inicial.