Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Uma década de estrabismo analítico

MEA-CULPA NACIONAL

Renê Guedes (*)

O fim dos anos de ouro da inteligentsia nacional nos remete ao questionamento das idéias propagadas no período. Sob o pretexto de elevar o debate político, os sustentadores das idéias iluministas de então se recusavam à discussão séria das políticas postas, em especial as econômicas. A ironia com que desmereciam todos em contrário pressupunha confiança total e absoluta nos caminhos do país. E tinham mesmo. Por meio de seus interlocutores, o presidente Fernando Henrique em especial, agiam jocosamente, algo entre a bazófia e o despeito. Aos de melhor memória, sobram expressões como "neobobos", "caipiras" e afins. Contudo, culpar somente os altos panteões do poder pela defesa cínica do pensamento único não seria honesto com os outros "agentes" sociais, igualmente respons&aacaacute;veis pelo engodo financeiro.

Nas redações, nesses últimos anos, erigiam-se verdadeiros baluartes para a defesa e a sustentação ideológica do sistema. O debate político, historicamente condutor das atenções, ficou restrito às premissas econômicas determinadas. Proscrito, se submeteu às intrigas menores, em coberturas desinteressantes e panfletárias. A "notícia de acusação" foi o tom. Denúncias suficientes para a acusação de todo um exército foram feitas, com pouca profundidade, cuja importância se media exatamente na assunção de uma nova, para o desaparecimento permanente da última. Os assuntos ganhavam relevância nessa ordem: economia, índices financeiros, taxas, juros, FMI, todos ganhando atenção máxima da corte. Todo o resto, rejeitado, considerado um assunto menor. "É a economia, estúpido", foi à frase de ordem, lema maior de toda uma geração.

O país desmoronava nas ruas. O tecido social, já secularmente esgarçado, se rompia. A miséria, que durante séculos fora afônica, aprendera a falar. E falou alto. Posicionou seus miseráveis nas ruas, dos garbosos cruzamentos às marginais fétidas. As periferias metropolitanas, nossas "Sowetos", exportaram sua revolta. A classe média, exasperada pela dúvida cruel de viajar ou não para Miami, acordou. Drogas, violência banal, solidão. Que mundo globalizado…

O que me revolta é ausência absoluta de realidade. O país se deu ao luxo de brincar, e brincar feito um moleque, durante todo esse tempo. Nos sentíamos civilizados, pois a nossa tecnocracia, tão preparada, nos conduzia para "Shangri-lá". O Primeiro Mundo. Estávamos tão perto. Nossa moeda emparelhava com o dólar. Nas academias, jovens executivos curtidos da soberba arrotavam os últimos ensinamentos aprendidos nos "MBAs", onde São Kotler e seus gurus diziam as últimas de Roma. Ousamos nos tornar um país de consumidores sem antes sermos cidadãos. Para o bom sertanejo, "colocar os carros antes dos bois".

Com tantos "esquecimentos" e erros de prioridades, o país continua na sua marcha da mediocridade. Euclides da Cunha dizia que o Brasil estava "condenado" a ser grande. Ele empregou o verbo "condenar" por saber e conhecer nossas vocações para as futilidades, para as bobagens inócuas. Nossos modismos não são de hoje. A imprensa tem grande responsabilidade. Com honrosas exceções, aderiu de corpo e alma às discussões econômicas, supervalorizando-as. Esqueceu que existia um país com necessidades, injustiças, com um enorme déficit social para se findar. Seus cidadãos, brasileiros comuns, que trabalham, produzem e geram PIB foram esquecidos. Pura estatística (na acepção stalinista da palavra). Devemos humanizar o jornalismo, e não só sua vertente econômica. Devemos exigir uma outra maneira de cobrir os fatos.

Devemos exigir um "mea culpa, mea maxima culpa" pelo estrabismo analítico da última década. Da imprensa, da universidade e de todos aqueles minimamente letrados deste país.

(*) Engenheiro civil