CASO TIM LOPES
Berto Oliveira (*)
Incrustada entre o mar e a montanha, cortada ao meio pela floresta da Tijuca e por duas importantes linhas férreas, a cidade do Rio de Janeiro dividiu-se naturalmente em regiões demográficas com aspectos sociais e comportamentais peculiares. A burguesia ocupou a Zona Sul, enquanto o proletariado se fixou na Zona Norte e nos subúrbios. Porém, a esta divisão estereotipada agregou-se um fator complicador chamado favela. Outrora mostradas com simplório romantismo em belíssimos filmes como Orfeu do Carnaval e Rio 40 Graus, as favelas cariocas transformaram-se de pequenas feridas topográficas desenvolvidas pelas desigualdades socioeconômicas em enormes úlceras putrefeitas pela ação nefasta do crime.
Lá, uma coletividade ordeira e trabalhadora vive constrangida e à mercê de narcotalibãs, déspotas escurecidos para os quais o viver ou morrer é questão meramente circunstancial. Pequenas e espalhadas pela cidade, sem problemas significativos na área da segurança pública, antigamente elas mal chegavam às dezenas. Hoje, graças aos caudilhos, aos populistas, aos corruptos e aos ineptos que insistentemente se alternam na sua administração, a ex-capital, o ex-estado e a atual cidade do Rio de Janeiro já soma mais de 600, transformadas em verdadeiros gulags urbanos e que ainda ameaçam crescer por todo o relevo da Cidade Maravilhosa.
O banditismo que gradativamente dominou as favelas sempre demonstrou relativa tolerância com o trabalho da imprensa em seus redutos. Que se saiba, porém, esta tolerância jamais ocorreu a custo de qualquer tipo de conluio dos setores da imprensa ética e responsável com facções criminosas ou vista grossa pelas suas ações, mas tão somente pelo afã de alguns integrantes da marginalidade em obterem uma fortuita notoriedade por conta dessa aproximação. Bandidos adoram ser entrevistados, fotografados ou filmados. Não há ego delinqüente ou inocente que resista ao clique de uma máquina fotográfica ou à lente de uma câmera ligada.
Notícia amarelada
É a esperança daqueles fugazes minutos de fama aos quais nem o mais empedernido facínora resiste. Afinal, são os veículos de imprensa que por força do dever de ofício tornam célebres pessoas ou grupos que certamente jamais o seriam não fosse o interesse público pela natureza da atividade que desenvolvem. Daí ser comum vermos nos jornais ou assistirmos pela televisão a depoimentos públicos, poses fotográficas mesmo que anônimas e até demonstrações de poderio bélico feitos por capos, chefetes e aspones do narcotráfico.
Por isso, à primeira vista, pode ter causado certa perplexidade na opinião pública a estapafúrdia decisão do comando do tráfico de drogas que domina a Vila Cruzeiro de ordenar o seqüestro e a morte do repórter Tim Lopes, em razão do seu trabalho jornalístico-investigativo durante um baile funk local. Mas seríamos todos tolos se exigíssemos o respeito aos direitos humanos de quem provavelmente nunca teve a própria dignidade humana respeitada e ainda sobreviva sob o gume afiado da desesperança e da morte iminente. Não fosse Tim Lopes um renomado e premiado jornalista, funcionário de um poderoso grupo de comunicação, certamente a sua morte não merecesse a atenção que recebeu dos veículos do mesmo grupo para o qual trabalhava e a repercussão em tantos outros. A verdade é nua e crua: se um anônimo fosse, um anônimo permaneceria como tantos outros desconhecidos que diuturnamente sucumbem a essa violência. Agora a polícia encerra as buscas pelo seu corpo e praticamente põe uma pedra sobre seu túmulo vazio.
Mas, independentemente da sua celebridade, anonimato ou patrão, de ter sido um ato de covardia contra um trabalhador, um insulto à livre manifestação do pensamento e um ataque frontal à própria cidadania, a agonia e morte do jornalista Tim Lopes tem que ter sido útil para melhorar alguma coisa em nossas vidas. Não pode jamais transformar-se em notícia amarelada de jornal velho ou mera referência numérica nos índices oficiais da criminalidade.
(*) Pedagogo, Rio de Janeiro