Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma perigosa escola de mercado

ENSINO E CONHECIMENTO

Beatriz Marcondes (*)

A propósito do artigo “Mídia e educação como negócio”, de Marcos Marques de Oliveira, um exemplo hipotético: em consulta a conceituado ortopedista particular, uma paciente reclamou de dor no joelho. O exame clínico do médico revelou profundo conhecimento sobre a anatomia do joelho. O médico, fazendo torções no pé, previa momentos em que a dor se acentuaria. Terminado o exame, o especialista solicitou uma radiografia. Imaginando ser necessária, a paciente concordou com o pedido. Após olhar a radiografia, o médico alegou a necessidade de anestesiar parte da enervação do joelho. Embora estranhando o procedimento, a paciente aquiesceu. Terminado mais esse exame, o médico solicitou exame cirúrgico para investigação interna do joelho.

Assustada com o pedido do exame, alegando que se tratava de procedimento muito caro, que movimentaria muita tecnologia, a paciente solicitou um diagnóstico, declarando que o médico já deveria imaginar do que se tratava. O especialista deu um nome técnico para a inflamação em uma enervação do joelho. A paciente solicitou a terapia para esse mal.

A resposta veio de pronto: “Bolsa de água quente!” Diante da simplicidade da terapia, a paciente manifestou indignação com relação ao pedido de exame cirúrgico. Ela alegou que, nesse caso, seria melhor ir para casa e esperar a dor passar e que, caso não passasse, ela entraria em contato com ele. Além disso, solicitou que o ortopedista explicasse o absurdo do pedido. O médico respondeu muito honestamente, tentando talvez sair-se bem da pressão das palavras da paciente: “Peço exames como esse porque os pacientes gostam.”

A situação descrita merece reflexão: por que um profissional cederia aos desejos daquele que ele atende? Aos desejos que ele imagina que aquele que ele atende tem. Uma segunda pergunta pode ser feita diante dessa solicitação médica: o que ocorre quando esse profissional cede aos gostos de pacientes?

Em primeiro lugar, o profissional imaginou que pacientes gostam de exames, talvez supondo que esses exames dariam mais segurança ao diagnóstico. Pensando assim, esse profissional também imagina que seu conhecimento não é suficiente para que os pacientes se sintam seguros. Certamente, é de se supor, neste caso, que o exame clínico teria sido mais do que suficiente para o diagnóstico, mas não foi dessa maneira que pensou o médico. Poderíamos também imaginar que todos os outros pedidos estivessem apenas a serviço de uma justificativa do preço da consulta. Ora, se isso fosse a única razão para tantos pedidos de exame, ele poderia ter preços variáveis em função da dificuldade do diagnóstico. Poderia também nem se incomodar em cobrar sempre a mesma quantia, alongando a consulta apenas quando fosse necessário. Mas o que importa é verificar que o médico fez uma opção que lhe furtou o exercício da profissão: ele procurou agradar ao paciente, e não seguir os procedimentos tal como aprendeu quando estudou, seguindo critérios que ele mesmo atribui a pacientes. Também procurou um recurso que validasse socialmente seu diagnóstico, pois é de se imaginar que ele, apenas com o exame clínico, pudesse chegar ao resultado final, um mal tão simples! Agindo assim, esse profissional deixou, naquele momento, de empregar os critérios de sua profissão; insiste-se: deixou de ser médico.

Quais as conseqüências dessa atitude? O profissional não apenas deixa de ser profissional, mas furta do paciente o direito de ser paciente que busca orientação médica, e não orientação a partir dos gostos de pacientes. Então, a relação médico/paciente se rompe e se cria outra, que pode ser considerada fornecedor/consumidor, como se se tratasse de “sua satisfação garantida ou seu dinheiro de volta!”

Desprovidos da palavra

Ora, tudo isso foi contado para fazer-se um paralelo com a educação atual, em que a perda dos critérios profissionais também não é nada rara. Quando um professor, um orientador educacional, um pedagogo na escola, um diretor desejam agradar ao outro, no caso, ao aluno, de modo semelhante ao do médico, eles rompem com os critérios de sua profissão e deixam seu papel de lado, tornando-se também fornecedores de um produto como se a educação fosse parte de elementos do mercado.

Nesse sentido, a reforma que transformou a escola em prestadora de serviço fez decretar com lei o que já ocorria de fato: a relação é entre cliente e fornecedor de serviços. Ora, pensar dessa maneira é roubar dos profissionais o direito de exercer sua profissão com critérios dela, e roubar daqueles que se beneficiam do exercício daquela profissão o direito de se beneficiarem dela.

Voltemos ao caso do médico. Ao seguir critérios de pacientes, o médico não apenas deixou de ser médico, como também impediu o paciente de ser paciente. Agora, imaginemos que a paciente aceitasse naquele momento submeter-se ao exame cirúrgico e fosse, no dia seguinte, ao hospital, ao centro cirúrgico, deitar-se numa maca e deixar-se anestesiar. Se, no exato momento do exame cirúrgico, ela percebesse que se tratava de um exame desnecessário, ou seja, de um procedimento médico obsoleto, feito apenas para agradá-la, como se sentiria? E o médico?

Obviamente, um mal-estar dominaria a situação. Tanto um quanto outro se colocariam numa hilária situação de não saber como reagir. Evidentemente, uma agressividade seria de se esperar: a da paciente, moldada pela revolta; a do médico, moldada pela defesa.

Bem, o que se pensa que ocorra com os sentimentos de professores e alunos, em sala de aula, quando procedimentos absolutamente desnecessários para a aprendizagem são deflagrados? Quando a tecnologia, por exemplo, invade as escolas sem que algo realmente procedente justifique seu uso? Não se deve imaginar que a lucidez de professores e alunos, no exercício de uma aula, seja tão evidente para perceber que os procedimentos estão ali usados sem nenhuma justificativa, a não ser a de mercado. Aliás, não ter a lucidez para perceber isso é o melhor caminho para que se mantenha minimamente a saúde mental em situações como essas.

No entanto, há uma percepção subjetiva de que os procedimentos estão a serviço de interesses mercadológicos. Tanto isso é verdade que os professores se sentem desprovidos de sua palavra como profissionais, e os alunos se manifestam agressivamente, tal como ocorreria no exame cirúrgico.

Pedagogia e mercado

Voltemos ao paralelo com o médico: será que esse profissional pode ter sempre a lucidez de que suas escolhas profissionais estão atendendo aos desejos de pacientes? Por que ele foi tão franco? Por certo, a pressão da paciente, manifestando revolta diante de tantos exames, o fez declarar a verdade, mesmo porque o discurso dela o levou a isso. Mas é difícil imaginar que esse profissional seja lúcido a ponto de saber que sempre submete seus pacientes a procedimentos desnecessários. Incorporar essa lucidez pode levá-lo a perceber que seu exercício profissional está sendo comprometido e sua identidade com a profissão também. Se ele sempre se mantém lúcido, no mínimo a inquietude deve fazer parte do exercício de sua profissão. De qualquer maneira, o desequilíbrio já está instalado. Em sua saúde mental, esse profissional está comprometido, pois cria para si um conflito que resultará em briga ou com sua consciência ou com seus pacientes. Ou com os dois.

Não se trata de comprometimento objetivo da saúde, mas de mal-estar provocado pelos valores das relações sociais norteadas pelo capitalismo de mercado.

Na sala de aula, o mesmo mal-estar domina professores e alunos. Pelo menos assim é de se supor, uma vez que já se constata isso no convívio escolar, bem como se toma conhecimento de que esse fenômeno também ocorre nas escolas européias, onde a relação se corrompeu há mais tempo.

É preciso ressaltar ainda que, se o professor sofre esse mal-estar, a atitude do aluno não pode ser outra senão a agressão. Não se trata aqui de agressão física ou moral, tal como se define criminalmente, mas de violência tal como se conceitua nos estudos do autor Eric Debarbieux [Direction de Eric Debarbieux e Catherine Blaya. La violence en milieu scolaire. Volume 3: dix approches en Europe. Paris: ESF, 2001]: a desordem que se caracteriza por não querer aprender.

Segundo Gilbert Molinier [La gestion des stocks lycéens: idéologie, pratiques scolaires et interdit de penser. Paris: L?Harmattan, 1999], a resposta do aluno se negando a aprender nada mais é do que o resultado desse pensamento que corrompe as relações nas escolas.

Para nós, revelar o quanto essas relações estão comprometidas, bem como revelar que o professor perdeu seus critérios profissionais e o aluno o direito de aprender, é nosso objetivo. Mesmo porque, é nosso dever salvar a instituição dos fracassos que comprometerão as gerações futuras. Comprometerão o meio ambiente, os valores sociais… E mais tantos setores que vão se degradando em função dessa patologia escolar.

É preciso também tornar de conhecimento público obras de autores que expõem com clareza e didática os procedimentos escolares, respaldados pela pedagogia, mas construídos com base nos valores de consumo, de mercado.

(*) Professora da rede particular de ensino, pós-graduada pela USP em Lingüística; co-autora, com Lenira Buscato e Paula Parisi, da coleção didática Português: Dialogando com textos, no prelo. Co-autora de paradidáticos (A fome na atualidade, Scipione, São Paulo, 1994, em processo de elaboração de edição revisada, e Evolução e biodiversidade: o que nós temos com isso?, Scipione, São Paulo, 1996. Co-autora, com Gilda Menezes e Thais Toshimtsu, de Como usar outras linguagens na sala de aula, Contexto, São Paulo, 2000.

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