DRUMMOND, 100
Sebastião Jorge (*)
Ai de mim, não digo uma tarde, mas, apenas, alguns minutos com o poeta e cronista em pessoa, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que cedo me acostumei a ler e reler a sua prosa afiada. As crônicas eu as recortava dos jornais e guardava para releitura em momentos especiais como o presente… É puro prazer.
Para não dizer que nunca estive com o poeta, pelo menos por meio de um dos seus objetos pessoais, conto o seguinte: estava na confeitaria centenária Cavé, próxima da Rua da Carioca, no Rio de Janeiro, e conversando com um dos garçons a propósito do cronista que, segundo os jornais, às vezes passava por lá para um chá ou cafezinho, quis saber a verdade ou mais. O bom garçom não apenas confirmou como mostrou a prova. Exibiu um guarda-chuva, cabo comprido, pano desbotado, que o peta esqueceu.
Perguntado por que não devolveu, eis a resposta:
? Ele me deu de presente.
? Mas o guarda-chuva sempre foi velho assim mesmo?
? Não. Faz mais de dez anos que está comigo.
Foi numa tarde, com aquele burburinho de gente entrando e saindo da Cavé, que eu tive contato com o poeta, isto é, por intermédio do seu guarda-chuva. Não satisfeito, desejei saber se o garçom queria vendê-lo.
? Nunca, por dinheiro algum.
Passei uma outra tarde com Drummond, desta vez através das crônicas que escreveu para os jornais, algumas ainda não publicadas em livro. Relendo-as, cuidadosamente vou seguindo a trilha de suas idéias, ricas em ironias, muita sabedoria e sempre voltadas à atualidade.
Antenado com a cidade, o mundo e a vida e sem fazer distinção sobre os assuntos, discorria a respeito do corte sob protesto de uma amendoeira no Leblon, da falta que lhe fizeram alguns amigos aposentados que deixaram de produzir cultura, dos namorados e dos amassos, da solidão da girafa, do natal, da lei etc. A escrita em prosa flui isenta de pernosticismo e exibição.
O estilo é simples e elegante, e para entendê-lo, mesmo nas entrelinhas, é fácil e prazeroso. Eis o melhor exemplo de uma prosa revertida em benefício da crônica. E se a crônica é considerada um tipo de literatura menor, Drummond soube elevá-la, dando-lhe personalidade e permanência. Honrou a tradição de um gênero iniciado por José de Alencar e Machado de Assis.
Poucos, pouquíssimos cronistas merecem ser lembrados como ele, principalmente pela rica produção. A crônica quando é boa, fica. Ruim, é esquecida e não terá outra finalidade senão servir para embrulhar o peixe da feira. Ao lado de um Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino compõe um grupo de mineiros fora de série nesse gênero do jornalismo.
O maranhense Josué Montello, escritor festejado e com mais de cem livros publicados, não fica aquém e pode ser incluído entre os maiores do país. Josué tem a seu favor a memória privilegiada para guardar detalhes da história e fatos vivenciados, o que torna suas crônicas úteis para consultas. Coisa rara.
Um dos textos do cronista que me chamou a atenção traz o título "O assunto é piolho (desculpem)&ququot;, no qual, na época de vigência do AI-5 soube, dissimuladamente, criticar a censura, pelos exageros. A crônica foi escrita pela chegada do exterior do compositor Chico Buarque de Hollanda e do escritor e jornalista Antonio Callado. Na ocasião foram submetidos no aeroporto a uma revista absurda. Os agentes federais queriam encontrar na bagagem discos, fitas cassetes ou livros de natureza subversiva, para incriminá-los.
O que fez Drummond ao abordar o episódio? Trouxe o piolho para o centro do assunto. Comentou que o inseto há muito desapareceu, mas de repente voltou a atacar nas escolas. Os alunos o desconheciam, o que levou os professores a mandá-los pesquisar na Biblioteca Nacional. De posse dos dados, podiam fazer uma redação a respeito. Colocou em choque as mães e as autoridades, com acusações recíprocas. Ao transportar o assunto à política, lembrou que em São Paulo os políticos estavam às vésperas de botar como ovo de piolho o governo do estado.
Finalmente, atinge o objetivo ao escrever: "O que eu não percebo é que tipo de piolho estrangeiro a Polícia andou procurando nas cabeças hígidas de Antônio Callado e Chico Buarque de Hollanda, pessoas notoriamente limpas, só porque deram uma volta no exterior". E pergunta: "Ou será que a anunciada abertura é simplesmente abertura de malas (e consciências), para descobrir algum piolho dos nossos?"
Triste para os leitores foi a crônica de despedida, três anos antes de morrer, com o título "Ciao", publicada no Jornal do Brasil: "Pois chegou o momento desse contumaz rabiscador de letras pendurar as chuteiras (que na prática jamais calçou) e dizer aos leitores um ciao ? adeus sem melancolia mas oportuno".
Eis o bom Drummond cujo centenário de nascimento o Brasil comemora, ao lembrá-lo pela "pedra no caminho" ou pela interrogação "E agora, José?". Quanto a tudo dou-me por satisfeito, não apenas pela descoberta do guarda-chuva velho, que lhe pertenceu, mas pela releitura da sua prosa e poesia.
(*) Professor universitário, jornalista e escritor