Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Umberto Eco

GUERRA & TERRORISMO

"Mídia foi o melhor aliado de Bin Laden", copyright Folha de S. Paulo, 2/12/01

"Percorre o mundo ocidental um debate que não diz respeito exatamente à censura -digamos que seja sobre a ‘prudência’. De que maneira, ao se divulgar notícias, é possível promover campanhas de propaganda política de terroristas ou até mesmo contribuir para a difusão de mensagens em código transmitidas por eles?

O Pentágono pede a jornais e a redes de televisão que tenham cautela, e o pedido faz sentido, porque nenhum Exército que se encontra em guerra fica satisfeito quando seus planos são revelados ou os apelos de seus inimigos são difundidos.

A mídia, já acostumada à liberdade total, não acha fácil adaptar-se ao clima de guerra. Houve um tempo em que quem revelasse informação que pudesse prejudicar a segurança nacional era fuzilado.

É difícil desfazer esse nó porque, na sociedade da comunicação -e, mais ainda, nestes dias de internet-, a discrição já deixou de existir. Mesmo assim, o problema é ainda maior.

Cada ato de terrorismo (e essa é uma história já conhecida) tem como objetivo divulgar uma mensagem. Mensagem que, mais especificamente, espalha o terror, ou, no mínimo, a intranquilidade ou a desestabilização. Sempre foi assim, mesmo no caso de terroristas que hoje definiríamos como ‘amadores’ -os de épocas passadas, que se limitavam a matar um indivíduo ou colocar uma bomba numa esquina.

A mensagem do terrorista espalha o terror mesmo que o impacto seja mínimo ou que a vítima não seja muito conhecida. O efeito do terrorismo é maior se a vítima é famosa ou se simboliza algo.

Um exemplo é dado pela história italiana: o grupo terrorista de esquerda Brigadas Vermelhas deu um grande salto à frente na consciência pública quando, em vez de matar jornalistas ou assessores políticos (ou seja, pessoas desconhecidas do grande público), passou para o sequestro, a detenção e depois o assassinato do líder partidário e antes primeiro-ministro Aldo Moro, em 1978.

Agora, o que Osama bin Laden esperava realizar quando atacou as torres do World Trade Center? Criar ‘o maior espetáculo da Terra’ -algo que nem sequer os criadores de filmes de catástrofe teriam imaginado- e deixar a marca visível de uma agressão contra os símbolos do poderio ocidental. Ele também esperava mostrar que é possível atingir as sedes do poder norte-americano.

Bin Laden não visava acumular um número xis de vítimas (que, para as finalidades dele, não passavam de um benefício adicional): desde que as torres fossem atingidas (e, se caíssem, melhor ainda), ele teria ficado satisfeito com apenas metade das vítimas que acabou fazendo. Ele não estava travando uma guerra, na qual o número de inimigos eliminados conta para alguma coisa -estava lançando uma mensagem terrorista e tudo o que contava era a imagem criada.

Assim, dado que o objetivo de Bin Laden era criar uma impressão na opinião pública global com essa imagem, o que aconteceu? Os meios de comunicação de massa foram obrigados a difundir as notícias, e isso é óbvio. Do mesmo modo, foram obrigados a divulgar as notícias sobre o que aconteceu após os ataques -os trabalhos de resgate, os trabalhos de recuperação, o horizonte mutilado de Manhattan.

Mas será que a mídia era obrigada a repetir esses relatos diariamente e por mais de um mês a fio, com fotos, imagens em vídeo e os intermináveis relatos de testemunhas oculares, todos fazendo as pessoas reviverem e relembrarem os ataques? É uma pergunta muito difícil de responder.

Os jornais aumentaram suas vendas com a impressão daquelas imagens; as emissoras de TV aumentaram sua audiência ao reprisar aquelas imagens; o próprio público pedia para rever aquelas cenas terríveis, para cultivar sua indignação ou, às vezes, por algum sadismo inconsciente.

Talvez fosse impossível fazer outra coisa, e as emoções que marcaram os dias que se seguiram ao 11 de setembro impediram as TVs e os jornais do mundo inteiro de acordar alguma espécie de pacto de discrição. Ao mesmo tempo, os diversos órgãos da mídia não podiam optar pelo silêncio de maneira unilateral sem perder leitores ou espectadores para a concorrência.

É fato que, dessa maneira, a mídia deu a Bin Laden publicidade gratuita no valor de bilhões de dólares. Dia após dia, mostrou as imagens que ele criara -e o mundo viu as imagens, com as quais quem vive no Ocidente tentou justificar sua confusão e os seguidores de Bin Laden tentaram justificar seu orgulho.

Entre outras coisas, o processo continua, e Bin Laden continua a conseguir o que quer a um custo muito pequeno. É por isso que se pode afirmar que a mídia, ao mesmo tempo em que o criticava, atuou como a melhor aliada possível de Bin Laden, que, dessa maneira, venceu a primeira rodada.

Para nos consolarmos do desalento provocado por essa situação aparentemente insolúvel, recordemo-nos do que aconteceu com as Brigadas Vermelhas na Itália. Quando elas aumentaram tremendamente o valor de sua aposta, com a captura e a morte de Moro, a mensagem transmitida foi tão perturbadora que acabou indo contra seus autores: em lugar de desintegrar as diversas forças políticas italianas, acabou por provocar sua união. O ato terrorista também despertou o repúdio público e acabou marcando o começo do declínio desse grupo terrorista.

Só o futuro nos dirá se o ‘espetáculo’ criado por Bin Laden -pelo fato de ter extrapolado o tolerável- desencadeou uma série de acontecimentos que marcarão o começo de sua derrocada. Se isso acontecer, então a vitória terá sido da mídia."

"Textos de Bin Laden deixam editores em dúvida", copyright The New York Times / O Estado de S. Paulo, 2/12/01

"Uma série de propostas para publicar palavras e idéias de Ossama bin Laden põe à prova a disposição de editoras de lidar com material importante mas muito questionável, ressuscitando o debate surdo que existiu desde que a Houghton Mifflin publicou uma edição em inglês de Mein Kampf (Minha Luta, de Adolf Hitler), em 1933.

Projetos baseados nos discursos e textos de Bin Laden já em andamento incluem um livro que toma por base um manual terrorista, de sua organização, Al-Qaeda, e um site na Web mostrando um filme de recrutamento da organização, com comentários de estudiosos. E, no Paquistão, Hamid Mir, editor do jornal Ausaf, em língua urdu, diz que um editor britânico, não citado pelo nome, vai lançar este mês sua biografia de Bin Laden, por este autorizada.

Uma proposta de lançamento de um livro com as declarações públicas de Bin Laden começou a aparecer em editoras em Nova York. A World Book Publishing, editora de 75 anos com matriz em Beirute, enviou cartas tentando comprar os direitos, em inglês, de um livro com as declarações de Bin Laden à rede de TV Al-Jazira, de 1998 e 2001.

‘A TV Al-Jazira obteve algumas das entrevistas mais atuais, exclusivas e ricas de conteúdo dadas por Bin Laden até agora’, escreveu na carta o diretor da World Book Publishing, Rafic el-Zein. ‘O conteúdo proporcionará aos leitores visões das crenças e objetivos de Bin Laden.’ Numa entrevista telefônica, Zein disse que a edição em árabe teria 80 páginas, incluindo 10 de ilustrações.

Apreensão – Vários executivos reagiram com um misto de desgosto e apreensão. Alguns pediram para não serem mencionados pelo nome, por razões que incluíram a segurança dos funcionários da companhia. Uns poucos informaram que o livro devia ser publicado, mas por outra editora.

John Sterling, editor da Henry Holt, pergunta: ‘Devemos ganhar dinheiro com as palavras de alguém que consideramos nosso inimigo jurado? Eu teria problema com isso. Não quero publicar propaganda de nenhum tipo.’ Peter Osnos, editor da PublicAffairs, que lançou edições em brochura do relatório do promotor especial Kenneth Starr sobre o então presidente Bill Clinton, disse que o livro não teria boa vendagem. Ele crescentou que a PublicAffairs também declinou da proposta de publicar um manual terrorista da Al-Qaeda.

Mas John Donatich, editor da Basic Books, disse que estudaria a publicação das entrevistas de Bin Laden no contexto correto. Ele lembrou um debate em recente Feira do Livro de Jerusalém sobre a decisão de publicar Mein Kamp, proibido na Alemanha e em outros países europeus. No ano passado, sob críticas de que lucrava com as vendas do livro nos Estados Unidos, a Houghton Mifflin informou que ia doar o dinheiro a instituições beneficentes.

‘Você está ajudando a propagar a palavra (de Bin Laden)?’, disse Donatich.

‘Ou isso é liberdade de expressão e, por não censurar algo, você não o torna menos vigoroso, menos mítico?’ Acrescentou que talvez publique as entrevistas de Bin Laden com uma crítica erudita.

Algum editor vai quase certamente assumir o projeto. Lyle Stuart, presidente da Barricade Books, pequena editora que se dedica a pôr à prova os limites da liberdade de expressão, disse que está disposta a fazê-lo. O site da Barricade na Web já inclui a transcrição de uma entrevista com Bin Laden, exibida pela CNN em 1997. ‘Vários leitores nossos ficaram alarmados e chocados’, contou Stuart. ‘Pensei que devêssemos entender a mente do inimigo.’ Stuart acrescentou que a Barricade Books, com matriz em Fort Lee (Nova Jersey), havia começado a publicar recentemente um manual de treinamento da Al-Qaeda, mas transferiu o projeto para a Paladin Press, pequena editora em Boulder (Colorado) que com freqüência lança livros não ortodoxos do tipo ‘como fazer’. Não foi possível contatar executivos da Paladin.

Não está claro se a TV Al-Jazira ou a World Book Publishing são donas dos direitos editoriais postos à venda. Martin Garbus, conhecido advogado que atua a favor dos direitos garantidos pela 1.? Emenda à Constituição dos EUA, disse que o próprio Bin Laden controlava os direitos de publicação de seus comentários em livro, da mesma forma como o espólio de Martin Luther King Jr. é dono dos direitos autorais dos discursos feitos pelo líder dos direitos civis. Como conseqüência, Bin Laden poderia tentar barrar a publicação.

Vários editores mostraram-se igualmente frios diante da biografia planejada por Mir. Mas este disse numa entrevista telefônica que Bin Laden estava disposto a receber críticas objetivas. ‘Para mim, Bin Laden não é culpado nem herói’, disse Mir. ‘É um homem controvertido, e só.’ Alguns executivos em editoras comerciais disseram que o lugar certo para um livro com palavras de Bin Laden é uma editora universitária, dedicada ao saber e não ao lucro.

Mas vários editores de imprensas universitárias não se entusiasmaram. Bill Stracham, diretor da Columbia University Press, disse que as palavras de Bin Laden são por certo documentos históricos, mas publicá-las literalmente não equivaleria a um trabalho de erudição. (Tradução de Magno Dadonas)"