Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Urna dos artistas

FUTURISMO

Allan Novaes (*)

Quando escrever um livro sobre o papel da mídia nas eleições de 2002, seu título será: Urna dos artistas. Nele, desenvolverei a idéia de que os artistas foram os principais responsáveis pela conquista de votos, assegurando lugares no Senado, na Câmara e, principalmente, garantindo a cadeira todo-poderosa da presidência da República.

A atuação dos melindrosos marqueteiros políticos, é claro, não ficará de fora. Ninguém melhor do que eles para reconhecerem a predominância da nova tendência midiática: a espetacularização. Mais do que a simples conseqüência da atração exagerada do público pelo sensacional, os especialistas admitem que a espetacularização da mídia é explicada pelo grande contingente de veículos de comunicação que têm deixado para trás a esfera da opinião pública a fim de explorar a esfera privada. A inclinação da mídia em focalizar o pessoal e a demanda do público para conhecer e penetrar na intimidade das estrelas provocam um ciclo contínuo e recíproco. "As doses mais fortes do espetáculo apenas escancaram nossa sede", seria a frase, de Eugênio Bucci, que eu colocaria como pensamento no início de um dos capítulos da obra.

Nos veículos de massa, o culto ao espetáculo é favorecido pela relação emocional criada entre um espectador e um personagem. Os artistas, ícones da sociedade e produtos perfeitos da mídia, são aqueles que realizam as aspirações sociais da maioria e, por isso, tornam-se peças indispensáveis para o funcionamento da tendência sensacional da comunicação.

Deixarei bem claro em minha obra que por causa da identificação entre o espectador e o personagem há aceitação de idéias e conceitos. Afinal de contas, a humanização da informação é o melhor meio para convencer as pessoas. Assim, o leitor poderá compreender que o horário eleitoral gratuito explorou a espetacularização da informação para manipular decisões, e aos artistas foram concedidos poderes para desempenhar tal tarefa.

Enéas e Seu Crêisson

Então, em grande estilo, surpreenderia a todos ao esclarecer que, quando falava de artistas, não me referia àqueles que estão sob os holofotes da fama pelo canto, a dramaturgia ou outra perícia qualquer. Referia-me aos verdadeiros profissionais: os políticos. Bingo! Após ter cativado e surpreendido o leitor com essa revelação inusitada, iria informá-lo das estratégias usadas pela mídia e pelo marketing político de homens como Guanaes, Mendonça e companhia, para transformar os políticos nos grandes artistas das eleições, deixando as companheiras de profissão Regina, Gabriela e Paloma Duarte e até o popstar Bon Jovi com inveja.

Querendo aprofundar na temática, faria explanação sobre como a espetacularização do horário eleitoral seduziu não somente os presidenciáveis, mas também os políticos de menor escalão. Eles, que não tinham condições de cobrir caríssimos cachês, viram-se obrigados a arriscar, assumindo a própria função dos artistas, atuando em frente às câmeras com considerável desenvoltura.

Meus leitores descobrirão que, com exceção daqueles que beiraram o ridículo, muitos desses políticos-artistas arrancaram milhares de votos das pessoas comuns. Graças à técnica da espetacularização, Enéas foi o deputado federal mais votado da história eleitoral brasileira. A barba e os óculos excêntricos, bem como a típica voz grosseira, foram artifícios dos mais eficazes para cativar o público, que via em Enéas a grande oportunidade.

Oportunidade de votar em alguém diferente, engraçado, autêntico, que aparece na TV e no rádio e que está na boca do povo. Em outras palavras: um artista. Então, acenderia a polêmica da errônea análise política do fenômeno Enéas. Argumentaria a favor da idéia de que não houve voto de protesto contra as (más) opções disponíveis. Houve, sim, o mais sincero voto da massa em alguém sob os holofotes da espetacularização.

Certamente, explicaria que o eleitor, sob os efeitos da espetacularização, escolheria o candidato-artista basicamente por dois motivos: pela credibilidade e seriedade transmitida, quando o eleitor se identifica com o candidato e lhe confere o direito de representá-lo com a sincera ilusão de que os problemas do país se resolverão; ou pela originalidade, cujos atributos excêntricos o aproximariam mais do sensacional ? adjetivo-chave para cativar os espectadores. Obviamente, citaria o exemplo de Seu Crêisson, afirmando que ele alcançaria o mesmo sucesso que o presidente do Prona se fosse um artista não-fictício.

Fim tragicômico

Outros políticos-artistas, na continuação da linha de raciocínio da obra, assumiriam uma postura mais discreta na adoção da espetacularização do horário eleitoral, sem, contudo, diminuir sua eficiência. Sorririam todo o tempo para a TV, se envolveriam forçadamente com a multidão em filmagens bem produzidas, exporiam a intimidade e transformariam experiências pessoais em dramas curta-metragem. O resultado: mais votos arrebatados. Outra vez citaria Eugênio Bucci, para abalizar o fim desse capítulo: "Os debates políticos se tornam melodramas sentimentais, e os temas públicos são tratados como assuntos da intimidade salpicados de namoros e intrigas pessoais."

Então, eu me aproximaria da conclusão em grande estilo. Preveria o comportamento da mídia no futuro. A transformação do horário eleitoral gratuito em shows e telenovelas pareceria inevitável. Seria didático e compensador envolver o eleitor no mundo dos artistas, onde a mágica da fama e da ficção ameniza as dores procedentes das cenas nuas e cruas da película do mundo real.

Uma vez que o ser humano adora ser transportado para realidades alternativas e fantasiosas, ele desfrutaria na espetacularização do horário eleitoral imenso prazer para informar-se a respeito do candidato. O ato de votar seria um deleite e a tão criticada obrigatoriedade do voto teria fim ? ninguém se recusaria a prestigiar seu artista favorito na urna. Não haveria mais adeptos ou militantes partidários, mas sim fãs e admiradores. Caso a espetacularização continuasse a contaminar a mídia e a política, as eleições pareceriam muito mais uma disputa pelo Oscar ou pelo Urso de Ouro do que com o exercício da democracia.

O fim de Urna dos artistas seria tragicômico. Os políticos-artistas premiados com o Oscar e o Urso de Ouro eleitorais, comprovando o poder das técnicas de dramaturgia e a sujeição aos padrões do marketing político, revelariam seu intento e caráter tão logo subissem ao poder. Após usarem a mídia para enganar os brasileiros, rejeitariam o personagem que interpretaram por tanto tempo, e acabariam por pintar o sete em todo o país. Como todo bom artista.

(*) Aluno do 2? ano de Jornalismo do Unasp e articulista da revista Canal da Imprensa <www.canaldaimprensa.com.br>