DEPOIS DO BARULHO
Alberto Dines
Se está correta a avaliação vocalizada pelo novo governo de que o único avanço do governo passado deu-se na área da democracia, a contribuição da mídia no mesmo período foi na direção oposta. O saldo dos quase sete anos de vida deste Observatório mostram uma imprensa empenhada majoritariamente em fazer barulho. Escandalizar. Ou espetacularizar.
As sucessivas crises econômicas desde 1998 foram acompanhadas de forma
precária e insuficiente. A prova está na invenção
de um fantasma que na pia batismal recebeu o nome de Mister Mercado
e passou a ser invocado cada vez que se manifestava a incapacidade
de diagnosticar situações e perceber tendências.
Este Observatório sofreu todo tipo de acusações quando desvendou a existência da híbrida figura gerada nas bodas clandestinas entre informantes-especuladores e informadores atarantados. Na última crise, durante a campanha eleitoral, o que chamou a atenção tanto dos comentaristas políticos como dos colunistas de economia foi a presença incontestável deste Senhor Mercado com suas vontades e caprichos.
Tarde demais: o Mercado é fato consumado, oráculo do culto ao barulho, ídolo da numerologia, sacerdote de uma religião que só se expressa por meio de um par de verbos: "despencar" e "disparar". Como no jornalismo econômico a manchete de hoje é a cotação de amanhã, o barulho pode ser visto como fenômeno casual ou induzido, em proveito próprio ou de terceiros, mas sempre falacioso.
Quando os especialistas e os senhores doutores reclamam da ênfase dada ao setor financeiro em detrimento do setor produtivo têm toda a razão. Mas o diapasão foi dado pela mídia ao entregar-se de corpo e alma aos "analistas" de bancos e empresas de investimento. Podem ser alcançados pelo telefone, a qualquer hora do dia ou da noite. Solícitos como damas educadas.
Dá muito trabalho deslocar-se até Franca para ver o que se passa na indústria de calçados, a Santa Catarina para ver como funciona a relação da Sadia com seus fornecedores, ou aos centros experimentais da Embrapa espalhados pelo país. Por isso nossos cadernos de Economia são majoritariamente financeiros, minimamente industriais e raramente rurais. De onde se conclui que a Lei do Barulho e a Lei da Preguiça fazem parte de um mesmo sistema.
Já os paroxismos políticos foram produzidos por algo concreto: os pseudofatos, vulgarmente conhecidos como factóides. Vigente nos últimos anos, o jornalismo fiteiro produto de grampos (legais ou ilegais) configurou um vale-tudo onde o beneficiário nunca é o leitor-cidadão, mas o conluio entre políticos espertalhões e profissionais oportunistas.
O presidente Fernando Henrique Cardoso (ou ex-presidente, depende do dia em que for lido este texto), nas últimas oito semanas bateu recordes mundiais de entrevistas por minuto. Justo: balanço faz quem encerra um mandato (no caso, dois e significativos).
A principal vítima do paroxismo denuncista, deixou praticamente intocada a Dona Mídia, a não ser no depoimento do (ex-)presidente a Roberto Pompeu de Toledo, na Veja, onde deu uma breve estocada na Folha. É pouco. A imprensa anda serelepe, finge-se de heroína das eleições apenas porque cumpriu com suas obrigações mínimas. Na realidade está nua, não porque queira exibir contornos alucinantes mas porque está pobre, sem grana para vestir-se. Não é assunto, não interessa. O Estado brasileiro usa um espelho embaçado ? problema do espelho.
E agora, José ?
No centenário de Carlos Drummond de Andrade, nosso vate maior, convém tirar da gaveta a questão elementar da ontologia brasileira ? o "Ser ou Não Ser ?" made in Brazil, angústia tropicalizada. Empurrados por espasmos, dominados pela obrigação da descontinuidade, queremos saber o que nos espera. "E agora, José ? " é o bordão nacional.
As dúvidas próprias da véspera de ano novo combinam-se com a esperança despertada pelos eleitos e completam-se com as angústias diante da maior crise já vivida pela imprensa brasileira desde quando começou a funcionar como sistema mediático.
E agora, Senhora Imprensa ?
Nestes dois meses entre a proclamação dos resultados eleitorais e a posse dos novos governantes, a imprensa entrou em clima de festa. Nada mais justo considerando a dose de novidades. E também a espetacular votação obtida por Luiz Inácio Lula da Silva que não estimula ? pelo menos no momento ? reparos e críticas que desagradem aos eleitores.
Tudo faz crer que o tapete vermelho oferecido ao eleito continue estendido. Por cortesia, civismo e, óbvio, precauções ? para evitar que seja percorrido no sentido inverso por cobradores, oficiais de justiça e juízes com dívidas protestadas, concordatas e falências.
Prevê-se a convocação da substituta da Lei do Barulho: a Doutrina da Abobrinha e o Princípio da Irrelevância. A Folha de S.Paulo, com sua inesgotável capacidade de antecipar-se e dar o tom, ofereceu amostra no último dia 24 de dezembro quando apresentou os 37 nomes que vão constituir o "núcleo duro" do governo.
Perfeita é a matéria na primeira página enquanto serviço informativo: cada nome com a respectiva foto, função, brevíssimo currículo e dois quadros comparativos: quantos paulistas, gaúchos, sindicalistas e mulheres. Na página 4 a sagração do irrisório: quantos barbudos, quantos bigodudos e quantos cavanhacudos.
E por que não quantos usam óculos ou disfarçam com lentes de contacto, quantos canhotos e destros, gordos, magros, baixos ou altos, fumantes e não fumantes, quantos jogam tênis, pelada, xadrez, sinuca ou pôquer aberto, quantos fizeram a primeira comunhão e quantos são do Santo Daime, quantos usam Colgate e Kolynos, quantos com colesterol alto ou glicose baixa, hipertensos quantos? E a próstata dos 33 homens? Quantos são portadores de carteira de motorista e depositantes na caderneta de poupança, quantos são psicanalisados ou leitores dos manuais de auto-ajuda?
Interminável é a curiosidade. O homem, desde que é homem e deixou de ser quadrúpede, quer saber. Como decorrência, e porque paga um dinheirinho ao jornaleiro e os constituintes lhe garantiram pleno acesso à informação, o leitor quer saber de tudo. Exige transparência, nada lhe deve ser ocultado.
Com as empresas de comunicação na lona e leitores que já não lêem jornal do mesmo jeito, esgotada pelo barulho que produziu e estressada pelos paroxismos aos quais se entregou, tudo faz crer que a mídia prepara-se para o Tempo das Abobrinhas. A conferir. (continua)