Tuesday, 12 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Viagem ao estômago da besta

ENTREVISTA / CACO BARCELLOS


Abusado,
de Caco Barcellos, 560 pp., Editora Record, Rio de Janeiro, 2003; tel. (21)
2585 2000; fax (21) 2585 2085; e-mail <record@record.com.br>; preço
R$ 55


[reproduzido do sítio da editora <www.record.com.br>; título da redação do OI]

Abusado. O título, já para lá de ousado, mostra de cara para o leitor que o universo onde ele vai penetrar a partir da leitura da primeira página o jogará de frente para uma realidade que, embora faça parte, cada vez mais do seu dia-a-dia, nunca foi esmiuçado de forma tão crua e real.

Conduzido pelo repórter Caco Barcellos ele percorrerá as vielas e becos da favela Dona Marta como se estivesse assistindo a um documentário. Trata-se de uma incursão que mostra, pela primeira vez, sem retoques, (Caco reproduz, inclusive, a linguagem dos bandidos), a omissão do poder público, a malha apodrecida da Polícia e o crescimento ordenado, quase científico, da parcela de miseráveis que testa, a cada ação, até onde poderão ir com o seu poder de fogo, armas e drogas. É uma lógica sem lógica, com código e leis próprias.

Caco leva o leitor a empreender uma verdadeira viagem ao estômago da besta que a sociedade organizada prefere ignorar e as autoridades tentam manter apenas “sob controle”. Durante os últimos cinco anos o repórter escutou, anotou, analisou e filtrou informações às quais a Polícia muitas vezes também teve acesso. A diferença está em que Caco Barcellos tomou a posição de denunciar, enquanto as autoridades acreditaram poder mantê-los “na pressão”. Deu no que deu. E quem quiser conhecer melhor onde foi que o governo começou a perder o controle da situação, como anunciou o secretário Garotinho, terá que ler Abusado.

O repórter Caco Barcellos começou a sua carreira no jornal Folha da Manhã, no fim de 1973, em Porto Alegre, onde nasceu. Em quase 30 anos de carreira jamais abandonou a trincheira da reportagem para exercer qualquer outra função que não fosse a de repórter, centrando suas matérias em dois focos: injustiça social e violência. No período da ditadura militar, ainda muito jovem, dedicou cinco anos ? de 75 a 80 ? à produção independente, em veículos da imprensa alternativa, como o jornal Movimento e o Coojornal, além de ter sido um dos criadores da revista Versus, especializada em reportagens sobre os povos latinos.

Ainda com esse olhar, em 1979 se aventurou a escrever o primeiro livro ? A Revolução das Crianças ?, depois de ter acompanhado a vitória dos guerrilheiros sandinistas na guerra civil da Nicarágua. Em 1992 veio o segundo livro, esse de enorme sucesso: Rota 66, que também está sendo relançado pela Editora Record, conta a história de uma unidade da polícia que mata, em São Paulo. Foi o resultado de uma investigação que também durou sete anos, para identificar todas as pessoas mortas durante o patrulhamento urbano, a partir de 1970, quando foi criada a PM. O livro ganhou o premio Jabuti-Reportagem de 1993 e outros seis prêmios. Projetado para o grande público por seu trabalho na televisão, onde começou no programa São Paulo na TV, da editora Abril, Caco Barcellos é hoje um dos mais conhecidos repórteres da Rede Globo, onde trabalha desde 1985, fazendo documentários para o Globo Repórter e reportagens especiais para o Fantástico e o Jornal Nacional. Atualmente é o correspondente internacional da emissora, baseado em Londres.

Sua entrevista:

Esse é um ambiente conhecido para você, que já cobriu bastante este tema. Como surgiu a idéia de transformá-lo em um livro?

Caco Barcellos ? Desde 1975, de fato, sempre freqüentei a periferia dos morros, para fazer as reportagens para revistas e jornais e os documentários para a televisão. Durante seis anos apresentei um programa semanal para a Globo News, que era todo produzido nessas áreas mais pobres do país, principalmente do Rio de Janeiro. Sempre que surgia a oportunidade de conhecer algum chefe de quadrilha, eu tentava convencê-los a abrir as portas da “firma” para uma grande reportagem. Cheguei a dar os primeiros passos no Acari, em 93, na época em que pela primeira vez o Exército fez uma grande operação nos morros do Rio. Mas essa é uma favela horizontal, e eu queria contar a história de uma quadrilha que exercesse o controle armado dos morros. Tentei a Rocinha, mas tive problemas de continuidade. A apuração das histórias envolve uma relação de confiança recíproca , difícil de ser mantida porque os líderes são mortos com muita freqüência

Por que você considerou importante contar a história do Juliano VP?

C.B. ? Juliano representou uma oportunidade de contar a história de uma quadrilha da terceira geração do Comando Vermelho, a que levou a organização a controlar o comércio ilegal de drogas nos morros do Rio. Outro componente importante da minha motivação foi o ambiente de formação da quadrilha. A favela Dona Marta é um dos lugares de maior concentração humana do mundo. Parece uma grande família de doze mil pessoas, que vivem grudadas umas às outras numa área relativamente pequena, do tamanho da Cinelândia. Todas se conhecem, todas são testemunhas das histórias que, por absoluta falta de espaço, sempre acontecem perto de todo mundo. Um ambiente riquíssimo para quem gosta de ouvir e contar histórias, uma oportunidade que eu perseguia há muitos anos, desde a primeira grande guerra do tráfico, em 1987.

Já que fica evidente que é sobre o Marcinho VP que você está falando, por que não usar o seu nome?

C.B. ? Decidi usar Juliano, porque é assim que o pessoal mais próximo dele prefere chamá-lo. A mesma regra vale para os outros integrantes da quadrilha. Meu objetivo não era denunciar um por um deles, até porque crimes de traficantes sempre foram divulgadas à exaustão pela imprensa, e mais recentemente até pela ficção do cinema. Minha intenção era contar suas histórias reais, e a das pessoas simples da comunidade, mas minimizando danos. É uma postura de que não abro mão. Prefiro jogar uma reportagem no lixo a divulgá-la com o risco das informações serem usadas como arma de fogo contra seus personagens, seja uma criança inocente ou o pior dos criminosos. Optei por usar os codinomes com a esperança de, sem mutilar a verdade, evitar que os inimigos os identifiquem para matá-los.

Houve algum pedido do Marcinho para que fosse feito assim? O nome dos demais bandidos também foram trocados?

C.B. ? Não houve pedido de ninguém. Ao contrário, alguns até queriam ver o seu nome verdadeiro exposto no livro, mas decidi evitar a identificação completa, porque achei que muitos deles não tinham uma noção exata do que significa dar um depoimento franco, sem reservas, para um repórter/escritor. É um universo absolutamente estranho pra eles e jamais associado a algum tipo de risco. Embora conheçam como ninguém o perigo concreto da relação com as armas de fogo, eu me sentiria um covarde se fosse usar a minha arma, a do texto, para traí-los. Sem receber nenhum tipo de pressão, usei o mesmo critério para omitir os nomes completos de alguns personagens não envolvidos com crimes, para evitar danos físicos e morais. Mas para o pessoal do morro, que já conhecia intimamente a história da quadrilha, será fácil identificar quem é quem.

Você não teme ser acusado de estar fazendo apologia dos bandidos?

C.B. ? O leitor é quem vai julgar. É um trabalho de alto risco, cheio de implicações éticas e legais, mas que precisa ser feito. E, pelo dever de ofício, tem que ser feito por um repórter. Eu sou radicalmente a favor de uma sociedade bem informada, da exposição da realidade dessa nossa guerra civil permanente e que hoje atinge todo mundo.

Mudou muito desde que você começou a trabalhar esse assunto?

C.B. ? No fim dos anos 70 fiz as primeiras reportagens mostrando que, para os pobres, a violência já estava fora de controle naquele tempo. Passados quase 30 anos, infelizmente, essas histórias também se tornaram graves para a classe média e para os ricos. E ainda precisam ser contadas com toda a sua complexidade. E não basta apenas apontar as falhas da Polícia, criticar o Estado. Investigar as origens dos crimes não pode ser confundido com apologia. Essa é uma tarefa efetivamente nossa, dos repórteres. Aliás, eu acho que a imprensa está bem servida de analistas e especialistas em violência, embora muitos deles nunca tenham tido oportunidade, ou vontade, de conhecer de perto os lugares sobre os quais emitem opinião. A reportagem precisa recuperar o espaço perdido, no mínimo para se corrigir uma distorção: a de se falar demais dos personagens envolvidos com violência sem se conhecer a fundo suas histórias.

Ao longo do livro, o Juliano poucas vezes aparece nas cenas de tortura e morte. Ele é realmente um bom moço, ou você usou de cautela?

C.B. ? Cautela? Talvez. A apuração de crimes, se feita de forma superficial é muito simples, sobretudo no morro onde o pessoal geralmente fala muito, inclusive de coisas que não fizeram. Falam para impressionar. Reproduzir esses relatos, sem o confronto das informações e investigação mais apurada, seria irresponsabilidade. Prefiro ser chamado de cauteloso a ser acusado de praticar sensacionalismo, com a justificativa de ter conquistado algum depoimento gravado como se fosse uma verdade absoluta. Sem dúvida foi a apuração mais difícil de meus quase 30 anos de experiência. Peneirar o volume impressionante de informações contraditórias deu tanto trabalho quanto o de convencê-los a me confiar as suas histórias.

Durante a feitura do livro você teve de manter um contato estreito com eles. Como foi essa convivência?

C.B. ? Durante toda a fase de apuração eu conversei muito sobre crimes de morte com o Juliano e alguns outros jovens da quadrilha para tentar entender essas atitudes de violência tão desmedida, que atinge principalmente os moradores do morro. Eles sempre têm uma justificativa baseada numa circunstância qualquer, geralmente derivada de um outro crime de morte ou de uma situação de confronto com o concorrente que, segundo ele, exige a imposição do poder pela força. É um ciclo de violência, uma triste herança do antigo esquadrão da morte da policia do Rio de Janeiro, que matou mais de 2.000 jovens na periferia da cidade, nos anos 1970. Os personagens são outros, mas os métodos são os mesmos, foram passando de geração a geração…

Quanto tempo você levou entre colher os depoimentos e escrever as histórias?

C.B. ? Não sei exatamente quanto tempo. Conheci Juliano na cadeia da Polinter, em 1996, logo depois dele ter sido preso por causa de uma entrevista que gerou muitas controvérsias no Rio. Mas comecei a conversar com a quadrilha dele no começo de 98. Usei também muitas informações das entrevistas que eu fiz na época da guerra de 87, e no cotidiano de trabalho nas áreas de maior incidência de crimes. Naturalmente, tentei trabalhar sempre em sigilo, mas na época do Caso João Salles, como a Polícia foi informada que um livro estava sendo feito no morro tive que abandonar a apuração. Cheguei a espalhar que havia desistido do livro, mas depois da caçada e da prisão de Juliano, quando a poeira baixou, retomei a investigação com outra técnica e com a colaboração de duas repórteres maravilhosas, a Andrea Wealbaum e a Sonia Oliveira Pinto. Escrevi durante 16 meses, mas como escrevia sobre acontecimentos extremamente atuais, inclusive com a morte de alguns personagens, só parei de apurar no dia em que o livro entrou na gráfica, para a impressão.

Esse é um tema polêmico em si, mas depois do ocorrido com João Moreira Salles, houve uma preocupação em esclarecer melhor as coisas? Esse é um livro de encomenda?

C.B. ? Não, não é um livro de encomenda. As despesas dele, que não foram pequenas, foram integralmente bancadas por mim. O João Salles sabia que o livro estava sendo feito desde o começo de 1999. Cheguei a contar para ele muitos detalhes da minha apuração, mas depois da autodenúncia do João sobre a mesada que ele dava ao Marcinho VP, nunca mais conversamos sobre o livro. Minha motivação não tem nada a ver com esse episódio particular, mas sim com a vida dos jovens da favela e os fatores que os levaram ao controle do comércio ilegal de drogas.

Que tipo de reação você espera do público e da crítica, na medida em que sabe estar escrevendo sobre um tema altamente polêmico?

C.B. ? Não é exagero afirmar que os brasileiros têm um medo exagerado dos traficantes, talvez por não conhecê-los com profundidade. A minha experiência com o tema me obriga a assumir responsabilidades, apesar do risco de sofrer muitas críticas e outros tipos de ataque. Minha pretensão é a de lançar uma luz numa área que me parece muito obscura e complexa. Por isso, em todo o processo de produção passei por momentos muito difíceis e até de sofrimento. Enquanto escrevia sobre traficantes perdi um amigo e colega de trabalho, o Tim Lopes, vítima de um crime brutal desse universo retratado no livro. A problemática da violência atinge cada vez mais as nossas vidas e, lógico, não só das pessoas do Rio de Janeiro. No Rio, por ser uma cidade deslumbrante, as coisas sempre ganham maior visibilidade e envolvem também trabalhos e opiniões apaixonadas. Este livro é de mais um apaixonado pelo Rio de Janeiro.

Houve algum episódio que surpreendeu o repórter experiente? Algum dos fatos retratados o chocou?

C.B. ? Aconteceram inúmeras situações de tensão e algumas muito engraçadas ? como um assalto que eu sofri em companhia de Juliano, em Buenos Aires. Eu tinha ido à Argentina para me encontrar clandestinamente com ele, na época um foragido da Justiça. Num intervalo dos depoimentos para o livro fomos assistir a uma partida de futebol, um clássico entre o Boca Junior e o Independiente, no estádio La Bombonera. Como chegamos atrasados, eu fiquei no fim do corredor de acesso às arquibancas populares, que estavam lotadas. O Juliano conseguiu se infiltrar no meio da multidão e ficou assistindo ao jogo pendurado no alto do alambrado de segurança. Lá de cima ele viu quando eu fui atacado por um grupo de jovens argentinos, armados com punhal. Me puxaram para o fundo do corredor. Me deram uma punhalada na perna. Me derrubaram com socos e pontapés e só pararam de bater quando o Juliano chegou aos gritos, dando porrada pra todo lado. Mas o que mais me impressionou foi a reação do Juliano, que queria discutir com um grupo de policiais que havia assistido a agressão sem ter feito nada. Tive que acalmá-lo. Saímos do estádio e como eu não poderia ir a um hospital acompanhado de um foragido, aproveitei o episódio para discutir com ele a experiência da vítimas dos assaltos. No fim da conversa, Juliano concordou que é, no mínimo, revoltante viver o outro lado, algo inusitado pra ele.

Depois de tudo que você ouviu e escreveu, mudou sua visão sobre as comunidades carentes e suas regras próprias? Se mudou, o que foi?

C.B. ? Mudou muita coisa. O que mais me impressionou foi ter descoberto que os traficantes e as pessoas simples dos morros são mais bem informadas sobre a realidade do Rio do que as pessoas ricas e de classe média. A explicação é muito simples: eles conhecem todos os ambientes da cidade pelo caminho do trabalho. Eles têm acesso, inclusive, aos lugares mais íntimos das famílias de vida privilegiada. Quase todas as mães de traficantes são, ou foram faxineiras e empregadas domésticas nas áreas nobres da cidade. E quantas famílias de classe média freqüentam as favelas da cidade?

Qual a imagem que fica pra você do Juliano VP?

C.B. ? A de mais um jovem que se negou a reproduzir a trajetória do pai, trabalhador honesto. Todos os jovens da quadrilha tiveram experiências profissionais, mas assim como a maioria dos trabalhadores do Brasil, sempre receberam salários indignos. Sei que outros fatores também ajudam a explicar a opção deles pelo crime: a falta de lazer e de uma boa educação nas escolas, alimentação e moradia de má qualidade. Mas os morros já estão cheios de ONGs e entidades assistencialistas que de alguma forma suprem essas necessidades mais básicas. Não sei porque as pessoas, sobretudo as mais conservadoras, não gostam de discutir a questão da qualidade do trabalho, que me parece o desafio mais importante. Apesar do desemprego, todos os traficantes que conheci já tiveram um emprego. O que nenhum deles teve foi emprego com salário digno.

Você atribui a isso a desistência pela vida honesta? É a partir dessa conclusão que eles pegam o “atalho” ?

C.B. ? Essa é uma conta que a sociedade está pagando. Afinal, no mesmo período da expansão da pobreza e do tráfico, houve uma grande acumulação de renda entre os ricos do país. Quem afirma isso é o Banco Mundial, que aponta o Brasil como um dos países que mais tem aumentado a desigualdade social. Não seria a hora dessa gente que faturou muito nos últimos 20 anos devolver um pouco do que já tirou dos pobres? Quase todos os personagens do livro ganham muito mais do que seus pais operários e mães empregadas domésticas. Se a situação da renda fosse invertida, tenho certeza de que a maioria abandonaria o tráfico. Caso contrário, não haverá repressão imediatista, por mais brutal que seja, que os convença a seguir o caminho dos pais, explorados de forma perversa a vida inteira.