MÍDIA & GOVERNO
Ivo Lucchesi (*)
O término do primeiro semestre deixa para o atual governo um saldo cujo perfil parece ser o da desorientação. Menos desorientada não está a mídia na tarefa de cobrir jornalisticamente a sucessão de acontecimentos. Desorientada também suponho estar boa parte do eleitorado, descontados os segmentos que sempre pautaram suas atitudes pelo viés da paixão irrefletida. Na tentativa de manter um olhar objetivamente distanciado da alta temperatura a envolver a condução da realidade brasileira, proponho um exercício de avaliação.
A prisão da lógica binária
Um primeiro problema se apresenta, sempre que chega ao poder um partido de identificação popular, tendo em suas principais bases setores da massa trabalhadora. Qual, pois, a natureza do problema? A incapacidade de superar-se a limitação de uma “lógica binária”. Governo e mídia estão aprisionados na mesma armadilha. De um lado, o governo reage às pressões tentando ver nos redutos de pressão forças organizadas para promoverem a desestabilização. De outro, a mídia sem saber exatamente como focar de modo crítico o que a situação estaria a exigir.
Ao promover a crítica, a mídia tem o receio de confundir-se com os interesses de redutos oligárquicos. Ao esquivar-se da crítica devida, fica a suspeita de estar apoiando ações governistas, em nome de possíveis interesses empresariais. Em conclusão, governo e mídia não têm conseguido levar a cabo suas missões. Como conseqüência, alastra-se, nos mais diversos segmentos da sociedade brasileira, a sensação de haver iniciado uma viagem sem a mínima noção quanto ao seu roteiro.
A solução inicial para sair do impasse seria o governo, de maneira objetiva, declarar seu projeto nacional, enquanto à mídia caberia o papel de fiscalizadora na condução desse projeto. Afinal, quem almeja chegar ao poder deve bem saber o que fazer nele. Ao longo de seis meses, porém, verifica-se muita exibição para pouca efetivação de procedimentos com os quais a vida nacional tomaria rumos. Por seu turno, a mídia não faz outra coisa que não abrir espaços para cobrir o caudal de fofoca que envolve as decantadas “reformas”, ao lado do surrado tema da baixa ou não dos juros.
Ficou uma pauta cômoda, prevista e exposta como capítulos de novela. Todavia, a vida de milhares de pessoas situa-se em outro enredo bastante aflitivo. Desempregados ? legião multiplicada a cada semana ? não querem saber quem está articulando estratégias para aprovação ou impugnação das reformas. Querem apenas oportunidades dignas para encaminharem suas vidas. O quadro de violência urbana e rural impõe implementação de políticas com a urgência que parece incompatível com o tempo requisitado pelo “jogo da democracia”.
Programa de marketing
O país carece de programas efetivos, à altura de conter as pressões que se avolumam tanto no campo quanto nas cidades. Afinal, a expectativa de milhões de eleitores se nutria dessa crença. Este, aliás, é o problema grave: o marketing eleitoral bem sabe como construir o imaginário social. Assim, formulou uma proposta que apostou na vitória da esperança e na derrota do medo. Esperançosos e destemidos estão cobrando a conta.
O que o marketing não sabe (e nem poderia) é como dar formato de realidade ao imaginário desenhado. Se o governo adotou prioritariamente a estratégia para conter o naufrágio que seria imposto por investidores estrangeiros e hoje ostenta, junto à comunidade internacional, reconhecida credibilidade, é preciso que saiba que essa mesma credibilidade irá à ruína tão logo se intensifiquem perturbações em meio à população, até porque não faltam insufladores para tanto.
Os marqueteiros de plantão venderam um pacote e crédulos (ou despreparados) o compraram. Promessas de programas sociais, sem verbas para sustentarem-nas. Solução: em caráter de emergência, aprovação das reformas previdenciária e tributária. O suficiente para, em tempo hábil, haver o recolhimento de fundos para a implementação dos respectivos programas, além de engessarem verbas ministeriais. Quanta imprudência!
Nada, porém, superou a demonstração de insensibilidade gerencial como o processo de “satanização” do funcionalismo público. Será que nenhuma inteligência circulante pelo Planalto foi capaz de alertar o governo para o fato de que uma categoria, já acumuladora por oito longos anos de privações salariais, e, acima de tudo, fiel como massa eleitora, não poderia ser alvo de mais duas duras penalizações? Num primeiro momento, o inexpressivo (ou perverso) “aumento” de 1% e, em seguida, drásticas medidas atingem proventos previdenciários. Com que tipo de servidor espera o governo contar para o funcionamento de sua própria máquina?
Enfim, até aqui, a fórmula tem gerado insatisfação em setores industriais, reação em redutos institucionais e revoltas crescentes em movimentos sociais, além de, ao desemprego proliferante, somar-se a deflação. Qual será o próximo passo? Com um quadro tão conturbado, a mídia, como de hábito, preferencialmente acrítica, noticia que, no outro lado do Atlântico, “eminente” intelectual britânico, com lágrimas nos olhos, vê no novo presidente do Brasil alguém que poderá mudar a face do mundo.
Quanta ingenuidade! Será que o brasileiro médio ainda se engana com esses truques de sedução? Além do mais, não se deve perder de vista que a “homenagem” proveio exatamente do centro de um Estado em grave crise de credibilidade, situação agravada nas últimas semanas com o “suicídio” (conforme atesta a versão oficial) de David Kelly, cientista e membro de organismo do governo britânico.
Em resumo, o que fica patente, para efeito de análise desse primeiro semestre, é a constatação de um processo de opacidade comunicacional que atinge as esferas governamental e midiática. O governo não tem sabido comunicar o que efetivamente pretende e a mídia não tem conseguido interpretar os fatos políticos. É pena que o pouco tempo de governo tenha sido tão expressivo para tantos equívocos.
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ