Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Viajantes em rotas difusas

MÍDIA & GOVERNO

Ivo Lucchesi (*)

Muitos setores podem estar queixosos, no tocante ao ritmo travado em que se encontrou a economia do país, ao longo dos últimos sete meses. À mídia, porém, o novo governo não tem faltado com a oferta de generosas e candentes pautas. É realmente espantoso o talento que, em especial, tem o brasileiro na capacidade diária de fazer-se objeto de notícia sem que, de concreto, nada faça. Governo e mídia, ora em enlevo amoroso no mais alto estilo "Romeu e Julieta", ora em caçada mortífera, no modelito "gato e rato", realimentam o processo, a despeito do acúmulo de "rotas difusas" que se sucedem às "rotas alteradas" [veja remissão abaixo].

Culto à tagarelice

Se verdade é que pouco tem sido feito, mais verdade ainda é que muito tem sido dito. Como se fala nesse país! São tantos os factóides emanados das "falações" que, se as direções dos jornais assim o desejassem, não faltariam matérias para duas ou três edições diárias. A lamentar fica a constatação da proliferante pobreza oratória, decorrente do flagrante despreparo intelectual da expressiva maioria que ocupa os microfones, principalmente no Congresso Nacional.

Quem tem o hábito (ou, no caso, obrigação) de sintonizar as duas emissoras de TV do Legislativo federal (TV Câmara e TV Senado), sabe o que significa sofrer ante a exibição oscilante entre o ridículo, o ingênuo e a grotesca teatralidade, afora raras participações nas quais a inteligência ocupa a cena. Enfim, se o brasileiro dedicasse à leitura um quarto do tempo do que destina a tagarelar, seríamos uma nação prodigiosa em desenvolvimento e autonomia. Infelizmente, o passar do tempo se tem encarregado de demonstrar que, num modelo cultural centrado na "visibilidade", o recolhimento silencioso exigido pela leitura não tem maiores atrativos.

A profusão do quanto o governo produz em discursos (oficiais e paralelos) é de tamanha ordem que o sistema midiático acaba por gerar deformações quanto ao que efetivamente deveria hierarquizar como foco jornalístico. O destaque para o que é dito por alguma autoridade governamental ou parlamentar tende a abafar o pouco (e ainda assim suspeito) do que tem sido feito em escala governamental. Vamos ilustrar o que está afirmado com algumas notícias publicadas:

1) "Fundo admite ter cometido erros durante crise cambial de 1998-1999 e acusa governo FHC de adotar políticas frouxas" (Folha de S.Paulo, 29/7/03);

2) "Planalto promete verbas para ter apoio" (Folha, 5/8/03);

3) "Consultoria da Unesco vai custar R$ 26 mi" (Folha, 3/8/03).

Silêncio estranho

As três notícias mencionadas contêm os ingredientes necessários quanto a possíveis desdobramentos de interesse público. Todavia, nenhuma delas produziu o menor efeito. Exploremos, portanto, os dados que as referidas matérias apresentavam.

Na primeira, constata-se que erros sucessivos, sempre contra os interesses emancipatórios das nações atreladas a consultorias e fiscalização do FMI, haja vista o caso da Argentina, têm sido confessados por altas patentes da ordem financeira mundial. O que causa espanto é o fato de governos vitimados por tais (des)orientações (a exemplo de Argentina e Brasil) não disporem de nenhum instrumento capaz de promover mínimo ressarcimento. Esclareça-se que o Brasil é o maior devedor do FMI (US$ 25,47 bilhões). Estes "erros", cuja conseqüência maior redunda em tornar as economias dependentes ainda mais fragilizadas ? é bom lembrar ?, significam políticas indicadas (ou impostas) pelo próprio credor que, após reconhecer o fracasso, continua a exercer pressão de modo a assegurar o pagamento da dívida, fruto de empréstimos. Não bastasse o reconhecimento do próprio erro, ainda imputa à "vítima" a culpa.

O espanto é que governos subordinados a tais ditames continuem radicalmente submissos a um gerenciamento cuja credibilidade já está desmoralizada. Quem paga a conta pelo erro alheio? Em que fórum internacional os países atingidos podem reivindicar o abatimento de tudo que decorreu de imposição errada? Ninguém oficialmente faz nada. Todos silenciam. As vozes altíssonas e corajosas se dirigem apenas aos que trabalham e, um dia, ousam pedir legalmente aposentadoria. Será isto justiça social? Será que o discurso "paz e amor" é voltado para a ordem do capital, enquanto para a ordem do trabalho resta o discurso "guerra e perseguição"?

A segunda matéria não guarda em si nenhuma novidade, a não ser o fato de ficar exposta a utilização da surrada "ferramenta" do toma-lá-dá-cá. O governo, para manobrar favoravelmente a votação para a "salvadora" reforma da Previdência, reteve, ao longo do semestre, verbas no total de R$ 2 bilhões, fruto ainda de dotações de emendas parlamentares fixadas pelo orçamento do governo anterior. O atual governo deixou, como "moeda de troca" para ser usada na barganha por votos, além de outra "arma" a envolver "nomeação para cargos" (só o PMDB, além dos outros, tinha a seu favor e guarda o lote de 20 nomeações). Cabia, portanto, à mídia, com a devida justeza, cobrar do atual governo ? que, ao longo de 20 anos, sempre incisiva e corretamente, na condição de principal partido de oposição, denunciava como prática escandalosa aqueles que de tal instrumento se valiam, a exemplo do ocorrido com a votação para a reeleição de FHC. Também, nesse caso, ratificou-se o "silêncio estranho".

A terceira notícia, a ter de estabelecer diferença de grandeza, realmente é surpreendente. A matéria dá conta de um convênio firmado entre a Unesco e o governo federal para "projeto de cooperação técnica" voltado para a execução do programa Fome Zero. O convênio consiste em contratar 45 consultores (obviamente estrangeiros) que receberão salários entre R$ 4.000,00 e R$ 10.000,00 mensais, além da verba suplementar a totalizar R$ 1 milhão para gastos com passagens aéreas e diárias em hotéis. O custo geral, segundo a notícia, é da ordem de R$ 26 milhões.

Vamos, pois, analisar criticamente, atitude que a mídia de plantão não gosta muito de promover. Será que justamente o programa "menina dos olhos" apresentado ao país como a grande oferenda pelo governo recém-empossado não dispõe sequer de cérebros ativos para darem curso ao que o próprio governo escolheu por realizar? Será que falta inteligência nacional para encaminhamento das políticas sociais? A sociedade precisa gastar R$ 26 milhões com profissionais estrangeiros?

Lembremos que a atual administração ampliou para 35 ministérios (nunca tivemos tantos) dos quais 4 são destinados a cuidar de programas sociais (Assistência e Promoção Social ? ministra Benedita da Silva; Políticas para as Mulheres ? ministra Emília Fernandes; Fome Zero ? ministro José Graziano; Cidades ? ministro Olívio Dutra). Acresça-se ao elenco o megaconselho para o desenvolvimento econômico (mais de 40 membros), sob a coordenação de Tarso Genro. Com tamanho "arsenal" de instrumentos e cérebros, ainda temos de nos socorrer com "importados"?

Uma vez mais, a mídia, além das poucas linhas da matéria, ao tema não retornou. Por sua vez, o governo fingiu, com radical silêncio, nada haver de estranho. E assim, em rotas difusas, o país vai seguindo em ritmo de acaloradas "reformas", cujas discussões, tramas e votações vão sendo urdidas na calada da madrugada. Enquanto a população dorme, diligentes deputados, em meio a galerias absolutamente vazias, porque vetadas ao público, votam, entre envergonhados e constrangidos, decisões que o eleitor jamais suspeitara que fossem formuladas. Que democracia!

Enfim, questões foram pontuadas, demonstrando quantas perguntas e esclarecimentos a mídia deixa de prestar à opinião pública. Por outro lado, não é impossível que o governo tenha explicações e argumentos convincentes para cada questão aqui exposta. Todavia, seria então indispensável que alguma autoridade viesse a público dar satisfações, já que o brasileiro tanto gosta de "falar". Até então, nem a mídia parece muito disposta a investigar, nem o governo parece julgar necessário. Naturalmente, o governo deve considerar tais fatos um procedimento normal.

Como seria agradável se o país não precisasse do teor deste artigo. Entre "rotas alteradas" e "rotas difusas", segue o Brasil no barco da "esperança" em direção a rotas ainda desconhecidas…

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha) ? RJ

Leia também