Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Vilões apátridas

VASCO COM SBT

Eugenio Celso Sanchez Vaquero

No artigo "A culpa foi só dele?", L. A. Magalhães analisa a (im)possibilidade de existência de vilão único na "tragédia de São Januário".

A mesma edição deste Observatório apresenta artigo em que o escritor Luis Fernando Veríssimo optou por abordagem irônica – a pouca consistência de nossos vilões; não temos vilões duradouros, vilões estáveis; volta e meia aparece um Grande Vilão, e sua vilania não resiste duas semanas. Em meio à insensatez reinante, foi um caminho de bom senso, com a sempre admirada criatividade, na qual de certa forma peguei uma carona ao comentar o primeiro artigo e o engodo (inter)nacional.

Quando da impossibilidade de continuar "segurando" um dos seus, que acabou exposto em demasia, a (ou através da) imprensa o amarra com força ao delito, simulando (ou não) o lançamento teatral do novo vilão na arena de espetáculos. Ao mesmo tempo que entretém, satisfaz frustrações e aplaca o sofrimento das vítimas, colocando a esperança de novos tempos, mudança de costumes, final da impunidade, possibilidade de uma vida digna.

Fecham-se as cortinas e a indignidade continua.

Se nossos vilões acabam "redimidos" a partir da própria inconsistência, são efêmeros, como é que as conseqüências, miséria, fome, doença, violência, prosseguem? São, ou estão, permanentes?

Falta um elo nessa corrente!

E nunca vi nem uma ligeira suposição de que a classe que manda no país, o grande vilão do Brasil, o vilão estável, pode não ser daqui. O vilão único ou problema sistêmico, o delito circunstancial ou resultado de um processo, está circunscrito às fronteiras do país?

Se o vilão consistente fosse daqui, ao menos o dinheiro desviado ficaria aqui. Se a classe que manda no país fosse daqui, ainda assim o dinheiro estaria aqui. Mesmo com uma péssima distribuição de renda. Mas não temos dinheiro para nada.

Para alimentar, educar, curar, sanear, construir, transportar, comunicar, despoluir, preservar, erradicar, criar emprego, fazer qualquer coisa, precisamos atrair capital de fora – e, é claro, só se desfrutarmos de credibilidade, confiabilidade.

Até para patrocínio ou apoio cultural em rádio, TV, jornal, revista, teatro, eventos culturais e artísticos, a quase total hegemonia do capital estrangeiro se faz sentir.

"Arte nas mãos dos poderosos constrange mais do que armas".

Poderíamos acreditar nos nossos vilões. Também tentar continuar acreditando que temos aquilo que merecemos; somos despreparados; deixamos tudo para a última hora; nem conhecemos nossos direitos ou caminhos para obtê-los; nossa justiça é muito lenta – a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta (Rui Barbosa) –; elegemos mal nossos representantes; somos os culpados de tudo; somos corruptos e ladrões.

Em todos os setores da sociedade aparecem em quantidade crescente os que reconhecem que somos nós mesmos os culpados, coletivamente. Mas ninguém confessa ser individualmente culpado; até porque poderia ser preso ou o novo vilão lançado na arena.

Até para não destoar dos outros, tentaríamos continuar embarcando nessa estranha lógica de que somos todos culpados sem que nenhum de nós o seja.

Se o dinheiro estivesse aqui, continuaríamos acreditando que somos o povinho que Ele colocou num lugar abençoado, sem vulcões, terremotos, maremotos, ciclones… Um lugar maravilhoso, repleto de beleza e riqueza naturais. Mas um povinho cheio de ladrão. Para prender todos os ladrões daqui seria mais fácil cercar o país e deixar sair uma meia dúzia.

Aliás, para atingirmos este elevado grau de compreensão foi necessário ler, ver e ouvir muito, com alto gasto, pagando com freqüência o maior dos preços praticados no mundo.

Foi assim que todos nós, desse povinho de dezenas de milhões, passamos a não ter dúvida alguma de que só uma meia dúzia poderia sair. Ao mesmo tempo que cada um de nós todos sabe que está incluído nessa meia dúzia.

Continuaríamos também nessa estranha lógica que nos torna – meia dúzia fora – ladrões.

Se o dinheiro estivesse aqui.

Mas como é possível tanto culpado e tanto ladrão estarem aqui, e o produto do roubo não estar?

Volta à infância

Em casos como o mencionado, do futebol, de desvio de dinheiro da venda do passe de jogadores, muito antes da CPI, a Receita Federal alertava que há muito tempo as incríveis somas correspondentes das transações nem entravam no país.

Ou em casos de contas como as CC-5, o dinheiro (mesmo na impossibilidade de se conhecer o montante exato, sabe-se que perfaz dezenas – ou centenas? – de bilhões de reais) escoa para o exterior. O nosso dinheiro, quando está aqui sai, e quando está lá fora nem entra. Aqui dentro não se vê a cor do dinheiro. E o vilão está aqui?

Fechar esta corrente seria mesmo "um prato cheio para o bom jornalismo", ou para o bom qualquer coisa. Ainda maior.

Já esta compreensão pode aflorar em ocasiões como a do domingo, quando caminhava pelo parque. Encontrei um garotinho que muito feliz passeava com seu cachorrinho. (Outro garotinho. Muito pequeno. Com certeza não era político).

Mostrei o cachorro estampado em minha camiseta – mesma raça, tamanho, cor, mesmo tudo – e disse a ele:

O seu é igual ao meu.

Bastou-lhe levantar a cabeça, bater os olhos para, sem a mínima alteração na fisionomia, me informar:

O seu é di falso!

Ainda tive tempo de perguntar:

É… e o seu?

Di verdade!

Também fico com a pureza da resposta da criança.

Os vilões daqui seriam tão inconsistentes por serem di falsos, não passando de imagens de quem de fora manda no país, este sim um vilão consistente, duradouro, permanente, ou di verdade?

Será que para enxergarmos prontamente coisas simples é necessário voltarmos a ser crianças? Ou é preciso descobrir em que ponto do desenvolvimento, da fantástica aquisição de sabedoria, o destino embaça a percepção espontânea da qual somos dotados quando chegamos ao mundo?

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