Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Villas-Bôas Corrêa

ASPAS

"Procura–se a verdade", copyright O Estado de S. Paulo, 16/8/00

"A verdade está perdida. Quem a encontrar, por favor, comunicar ao setor de consciência da cidadania, cujo endereço se está tornando cada vez mais ilegível pela corrosão dos valores do caráter nestes tempos de banalização das idéias e enxovalhamento das instituições. Esse poderia ser o mote para uma campanha nacional pela moralização da palavra e refundação da política, pois nunca se viu tanta irresponsabilidade dos atores sociais quanto no ciclo de destempero verbal, narcisismo e arrogância que estamos vivenciando.

A verdade, já dizia Brecht, tem cinco lados: a versão de quem diz, a de quem ouve, a das circunstâncias, a dos canais de transporte e a da própria combinação desses elementos. A verdade balanceada da última hipótese é a que mais se aproxima do ideal. Não é o que vemos no País, onde a verdade de quem diz fica brigando com a verdade de quem nega.

Onde está a verdade? Com Eduardo Jorge, com o Ministério Público, com o ex–senador Luiz Estevão, que acusa os procuradores de terem mentido no Senado, com os parlamentares da oposição que querem uma CPI ou com a base governista que a rejeita? Onde está a verdade? Com José Eduardo de Andrade Vieira, ex–dono do Banco Bamerindus, que afirma terem sobrado R$ 130 milhões no caixa de campanha de FHC, ou com o presidente Fernando Henrique, que afirma não ter sobrado nada? E onde estão os remédios com preços controlados anunciados com estardalhaço pelo presidente? A verdade está com o povo, ao denunciar, em depoimentos na TV, a trama dos laboratórios, diminuindo uns míseros centavos de poucos remédios e aumentando o preço de muitos outros, ou com o ministro José Serra, que festeja uma baixa geral de preços?

E a mídia, hein, que, no clima geral de mapeamentos apressados e busca irrefreada do furo, vestindo o manto inquisitorial de Torquemada, passa a acusar pessoas a torto e a direito, sem evidências claras, amparando–se na simples contagem de telefonemas dados pelo juiz Lalau para gabinetes de políticos? Ora, é sabido que toda a bancada paulista, incluindo os petistas, assinou pedido para liberação de verbas para o TRT–SP. Tal atitude, porém, até prova em contrário, não torna certos perfis merecedores da expressão ‘envolvidos com corrupção’, mesmo que, numa das pontas, esteja o famoso juiz Nicolau, que, por bom tempo, usou a liturgia do cargo de presidente do Tribunal Regional do Trabalho para abrir ante–salas do poder.

Afinal de contas, o que está por trás da algaravia que tomou conta da locução nacional? A resposta mais brusca aponta para a esteira negativa: irresponsabilidade, leviandade, sensacionalismo, hipocrisia, oportunismo, vaidades, luta de grupos e, claro, corrupção, muita corrupção. Uma resposta meditada indica outros componentes, mais fortes, que estão localizados na origem da cultura de emboscadas que impregna a vida nacional. O primeiro elo da cadeia é a fragilidade das instituições. Um país com 1 milhão de leis, como o nosso, exprime a inexorável situação: somos exímios na arte de criar cultura por decreto, ou seja, querer remendar o erro com palavras. E, como as leis não são cumpridas e a Justiça é tardia, a impunidade campeia. A instituição jurídica fica maculada. A instituição política introjeta–se dos costumes patriarcalistas das capitanias hereditárias, enraizados na alma de grande parcela de seus representantes. Passa a ser desacreditada.

A instituição governamental, por sua vez, administra um espólio com herdeiros que brigam por fatias maiores. As moedas de troca no balcão das recompensas a tornam refém de permanente instabilidade. As conseqüências não poderiam ser outras senão a degradação de valores, a banalização dos costumes, a estandardização dos comportamentos, o arrefecimento das doutrinas e a quebra dos compromissos. O cenário seguinte é previsível: a espetacularização da política e a marketização das linguagens.

Em função da fragilidade das instituições políticas e jurídicas, da escassez de autoridade e disciplina e do alargamento da impunidade, cresce o papel da mídia, que passa a ocupar, mesmo que precariamente, a função de promotor, juiz, controlador social. Não é o que fazem, por exemplo, programas televisivos de apelo demagógico–populista? Surge, então, uma midiapolítica, que é a política pautada pelos meios de comunicação. Por seu espaço fluem as vaidades, os apelos fáceis, as linguagens manchetadas. As fontes passam a expressar aquilo que a imprensa, de maneira preconcebida, pauta e determina.

A substância perde para a forma. A versão suplanta a verdade.

O reducionismo de conceitos e perfis operado pela mídia acaba fertilizando o terreno da leviandade. E, sob a ilusão de estarmos pertinho de apurar a verdade, cada vez mais longe dela ficamos. O repertório de falas a que vamos assistir, a partir desta semana, na programação eleitoral da TV e do rádio será mais um exemplo do ficcionismo na política. A telegenia – a boa apresentação na TV – dará o tom de candidatos. Eles estarão sujeitos a diretores de consciência que lhes dirão como se comportar. Seremos submetidos a uma torrente de mentiras. Aparecerão propostas mirabolantes. E candidatos–polvos, que desprenderão nuvens de tinta para sujar a água e evitar o ataque de adversários. Sobre alguns se dirá: o homem tem boa–fé. E de que adianta? Um nazista de boa–fé será sempre um nazista. Canalhas autênticos não passam de canalhas: de que adianta sua autenticidade?

E assim caminha o País, tateando nas ruelas das dúvidas, cambaleando nas avenidas das emboscadas, tropegando no labirinto da irresponsabilidade, expressando linguagens rasteiras. Não por acaso, a diversão nacional é a ‘pegadinha’, a mania do deboche, a mentirinha rotineira, a invasão de privacidade, a ma–fé. O Brasil está vivendo o esplendor de seu exercício de fuga. E se esconde por trás de uma grande metonímia: o riso passa a substituir o choro. [Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor-titular da USP e consultor político. E–mail: gautorq@dialdata.com.br]"

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