Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Villas-Bôas Corrêa

LULA PRESIDENTE
"Não vou aderir", copyright No
Mínimo (www.nominimo.com.br)
, 5/11/02
"Não posso, não devo, não quero
mudar. Não vou aderir. Nenhuma arrogância exibicionista:
ao contrário, a afirmação de humildade de quem
se surpreende à margem, espiando de fora, na beira da calçada,
passar a procissão que engrossa a cada momento, carregando
o andor do novo ídolo, com o saco de esperanças às
costas, distribuindo promessas com a prodigalidade generosa de quem
esperou 13 anos para realizar o seu sonho, agora repartido com a
maioria do povo, que infla para o consenso, a um degrau da virtual
unanimidade.
Nem contra nem a favor. Ou o equilibrismo no fio da esperteza, no
muro do oportunismo. Não estou cobrando nada dos outros ou
atirando ao vento as carapuças da crítica aos que
cederam à paixão e reformularam conceitos que pareciam
sólidos como o juramento eterno do casamento indissolúvel.

Busco apenas manter a coerência de mais de meio século
de militância ininterrupta no jornalismo político.
E não abjuro convicções consolidadas pela minha
geração em longo percurso, que se inicia com a derrubada
da ditadura do Estado Novo, em 29 de outubro de 1946, e a deposição
de Getúlio Vargas; que testemunhou e participou do período
dourado da experiência democrática da Constituicão
de 46, e cobriu o corte seco da transferência da capital para
Brasília – que fecha um ciclo e inaugura nova fase da atividade
parlamentar e do jornalismo político.
Passamos pelas turbulências da renúncia do aloprado
presidente Jânio Quadros, dos erros primários de Jango,
que cavou a própria sepultura; dos quase 21 anos de arbítrio
da recaída na ditadura militar do rodízio dos generais-presidentes.
Vivemos as emoções da campanha das diretas-já,
que desaguou na virada do Colégio Eleitoral e a eleição
do presidente Tancredo Neves, que não chegou a tomar posse.
O mais é o enredo do último ato, com o fenômeno
eleitoral da eleição do presidente Fernando Collor
de Mello e seu desfecho frustrante e o bis dos dois mandatos do
presidente Fernando Henrique Cardoso.
Enfim, chegamos à eleição de Luís Inácio
da Silva, na quarta tentativa, no segundo turno, com a votação
recordista de mais de 52 milhões de votos. E a explosão
popular, de amplitude nacional, que se espalhou como água
derramada em piso liso, por todo o país e contaminou todos
os níveis sociais.
Mas, a singela reverência à realidade, que se enxerga
sem forçar a vista, não justifica o desapreço
pelas normas éticas, penosamente definidas nas conquistas
de décadas e que, a meu ver, atendem às peculiaridades
da reportagem política. Em todos os seus níveis, com
crescentes exigências a cada degrau que se sobe, até
topo dos colunistas e comentaristas que assinam os seus textos.

Se todo o repórter tem o dever ético da exatidão
possível no relato objetivo e direto, sem rodeios ou dribles
na verdade, em muitos, em quase todos os setores, não se
exige a imparcialidade, como um dogma da categoria. O cronista esportivo
pode assumir a sua paixão clubística, com a correção
profissional na análise da partida e dos lances polêmicos.
Não passa por nenhuma cabeça sensata a cobrança
do distanciamento isento na cobertura do desfile das escolas de
samba.
O jornalismo político é uma categoria à parte.
E quem leva sua profissão a sério tem que perseguir,
com a obsessão do fanático, a isenção,
a imparcialidade. Delas depende a credibilidade que sustenta a confiança,
o respeito da sua relação com o leitor, o ouvinte,
o telespectador. O risco de giz que separa o jornalista do militante.

Essas normas elementares do nosso catecismo não caíram
do céu, impressas nos códigos das redações.
Custaram lutas surdas, com lentos avanços nas brechas das
mudanças da imprensa nos últimos cinqüenta anos.
A derrubada do Estado Novo e o fim da abjeta censura ditatorial
jogou a quase totalidade dos grandes jornais na desforra das humilhações,
com o apoio maciço à UDN, com todos os excessos no
noticiário das duas campanhas da candidatura do Brigadeiro
Eduardo Gomes, em 45 e 50; do marechal Juarez Távora, em
55: e de Jânio Quadros, em 60. Passo a passo, com as decepções
e derrotas, a revisão da linha partidária, evoluiu
para a isenção do noticiário, restringindo
aos editoriais o espaço adequado para a opinião do
jornal.
Em movimento sintonizado, a geração de Carlos Castello
Branco, seu guru, esculpiu, com cuidado para não rachar o
mármore, o modelo de cobertura política, com a consolidação
das suas características fundamentais: a isenção,
a imparcialidade, a análise interpretativa e a especulação
dos prováveis desdobramentos.
Não descubro motivos para renegar o legado da minha geração
com o recuo ao jornalismo engajado, partidário, parcial.
Não quero mudar no fim da linha. Os princípios éticos
da minha crença estão cristalizados na minha cuca.

Torço para que o presidente Lula faça um grande governo,
realizando as mudanças dos seus compromissos de campanha.

Não sou a favor nem contra.
Simplesmente não vou aderir."

"Três histórias exemplares de notícias que produzem angústia", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 6/11/02
"Primeira história
Manchete de primeira página de um grande jornal brasileiro da última sexta-feira, 1? de novembro: ?FMI pedirá superávit maior ao Brasil?. A notícia é alarmante. Diz que o ?FMI aconselhará ?fortemente? ao Brasil o aumento da meta de superávit primário?. Com isso, antecipa problemas sérios para um governo Lula, que em tese precisa gastar mais e não menos na área social. O fio condutor da narrativa é a perspectiva de tensão entre o governo Lula e o FMI, enfatizado pelo advérbio ?fortemente?. No título interno, a idéia de tensão é exercida pelo advérbio ?já?: ?FMI pressiona o governo a elevar já meta de superávit?.
Mas a leitura atenta da matéria amostra que o repórter desse jornal falou apenas com um único ?técnico? do FMI (não com um de seus dirigentes) e esse técnico ?admitiu ouvir argumentos em contrário. Tanto do governo brasileiro como do representante do PT que participar (da reunião de novembro)?. Na fala desse técnico não está expressa em nenhum momento intenção de confronto ou de pressão, e sim a de acordo, de compromisso. O jornal não se propôs informar adequadamente o leitor. Sua proposta foi a da criar angústia.
Segunda história
Manchete de página inteira na mesma edição: ?Mínimo e IR já criam divergências no PT?. De novo a idéia de tensão, conflito: Lula ?nem tomou posse mas (…) o PT já tem de administrar divergências internas quando entram em pauta salário mínimo, aumento de impostos e de juros?. Quem votou em Lula sente uma alfinetada de angústia. Será que vai dar tudo errado? Será que ele não vai cumprir o que prometeu? Ou, o que é pior, será que vai ocorrer uma crise?
Mais uma vez, o fio condutor dessa narrativa é a perspectiva de crise. Dessa vez entre um governo Lula e sua bancada. Os dois repórteres não consideraram que esse tipo de discussões de um partido de oposição que chega ao poder é natural e o mais provável é haver um acerto de posições, sobre esses e outros assuntos. A contextualização sensata da informação tiraria dela seu potencial de criar angústia.
Terceira história
Manchete de página inteira do caderno ?Cotidiano? no último domingo, dia 3, no mesmo jornal: ?Cota para negros volta polêmica e indefinida?. Diz o texto que ?Dificuldades de ordem técnica estão no caminho do futuro ministro da educação do governo Lula para implantar uma das medidas mais polêmicas do programa petista (…) Lula terá que se equilibrar entre as cobranças do movimento negro do partido e a oposição de reitores, manifestada em muitas ocasiões.?
Viram o drama? Terrível. Lula quer implantar as cotas, mas os reitores são contra. A idéia de tensão é introduzida quase subliminarmente pela expressão ?equilibrar-se entre cobranças?. Como numa corda bamba, Lula tem de se equilibrar, e pode até cair. E as universidades tem autonomia, diz a matéria, o que torna as coisas ainda mais difíceis. Outra angústia, principalmente entre os negros.
Mas essa tensão, introduzida na abertura e mantida como fio condutor da narrativa, não tem base nas poucas informações do corpo da matéria. Apenas uma reitoria, a da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, se opôs à idéia das cotas para negros. Mesmo assim está implantando a cota já neste vestibular – sendo pioneira no País e obedecendo uma lei estadual. O que também mostra que as universidades não têm essa autonomia toda. E o repórter não sabia ou não quis mencionar que a maior universidade brasileira, a USP, já começou a discutir uma proposta de cotas para negros.
A Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior ?evitou tomar posição?, informa a reportagem, e os 42 reitores que se reuniram para debater o assunto concluíram ?que a questão era mais complexa?.
Claro que é complexa. Esse é o problema. Na USP, por exemplo, a discussão empacou no problema de como operacionalizar as cotas. Como definir quem é negro? E por que não cotas para brancos pobres? O fato de uma questão ser complexa não significa conflito ou tensão.
Um novo conceito de notícia
O jornal, vocês já adivinharam qual é: a ?Folha de S. Paulo?. Ao adotar o potencial de criação de angústia como critério de seleção dos fatos e de sua transformação em notícia, a ?Folha? está dando mais uma notável contribuição à teoria do jornalismo.
As teorias da notícia evoluíram muito desde suas primeiras formulações funcionalistas ou marxistas. Os funcionalistas ou estruturalistas, como Van Dijk, diziam que do infinito número de fatos que podem virar notícia, os editores selecionam os mais próximos, os que mexem com pessoas mais famosas e os de maior importância. Os marxistas diziam simplesmente que notícia é a ?transformação da informação em mercadoria?.
Hoje se trabalha muito com o conceito construtivista de que há um processo social de construção da notícia, passando por instâncias individuais, sistêmicas, e operacionais. Nesse processo, dá-se um embate ideológico no interior do próprio processo – por exemplo entre a instância individual e a sistêmica. Entre o autor-jornalista e o sistema de determinações da empresa.
A ?Folha?, da pós-modernidade à angústia
O novo conceito de notícia adotado pela ?Folha? parece se inspirar nos ideólogos da pós-modernidade, para os quais não existe uma realidade objetiva e tudo é discurso. Os pós-modernos trabalham a notícia a partir do conceito de discurso de Foucault. Para eles, a notícia é um processo social específico não só de produção, mas também de instituição de significados. No limite, os pós-modernos mais radicais dizem que não é o fato que gera a notícia: a notícia é o fato.
No projeto ?Folha? de hoje, o fato mais freqüente instituído pelas suas notícias, especialmente pelas suas manchetes, é o sentimento de angústia. E o critério de escolha e edição das notícias é seu potencial de gerar angústia. Para a ?Folha?, notícia é o fato capaz de produzir angústia. Mesmo que seja preciso forçar um pouco a barra, o importante é que a matéria jornalística crie no leitor uma sensação de desconforto, de medo, de que algo ruim está prestes a acontecer. O leitor da ?Folha? que se cuide."