JORNALISMO POLÍTICO
"Novo Congresso desafia a imprensa", copyright Jornal do Brasil, 29/11/02
"Como a roda da especulação política gira sem parar e em alta velocidade nas fases nervosas de transição do poder, é natural que a bancada do PT cobre do mutismo de Lula o mínimo de informações sobre a montagem do futuro. Ou que, do outro lado do muro, o balaio dos derrotados se assanhe nas indecisões sobre o que o espera nos próximos quatro anos.
Creio que há um exagero na precipitação e está fazendo falta o tempero da experiência na projeção dos cenários prováveis na mudança inédita, com a troca de posições do governo de esquerda e a sopa das siglas de centro-direita despejadas no caldeirão morno e sem atrativos da oposição.
Repita-se para gravar nos neurônios desatentos: pela primeira vez, na normalidade do processo democrático consolidado, um candidato com a marca e as singularidades da biografia de Lula, que construiu toda a sua carreira nas lutas sindicais nos duros tempos da ditadura, chega à Presidência da República, com mais de 52 milhões de votos, como um representante da esquerda. Com toda a sabida imprecisão do racha maniqueísta de coloração ideológica, ninguém confunde o PT com o PFL ou com a bagunça do PMDB, uma legenda à espera da faxina urgente.
Desde a queda do Estado Novo, na redemocratização de 46, a esmagadora superioridade das forças conservadoras dava-se ao luxo de ocupar os dois lados do contraditório político, com o PSD governista e a UDN a colecionar derrotas na oposição. O ditador Getúlio Vargas voltou ao governo, em 50, nos braços do povo, com a rebelião do voto. Mas, governou apoiado no PSD, com o PTB de contrapeso e a UDN na oposição. Jânio não conta, escapa da moldura da normalidade. E o vice Jango Goulart foi catapultado à Presidência pela renúncia do embirutado e não se agüentou, expelido pela incompetência política e a frouxidão com que se acovardou diante do golpe que lançou o país nos 21 anos da Redentora.
Política em tempo de ditadura não pode ser levada a sério. É comédia de farsantes para uso externo. Extremou a radicalização ideológica, acabando com os partidos tradicionais e impondo o bipartidarismo da patuscada da Arena, como vivandeira de quartel, e o MDB fingindo de oposição tolerada.
Depois que a ditadura militar caiu de podre, a nova experiência democrática misturou esperanças com o caldo azedo de decepções. Novos partidos sem raízes, como o PFL, o PMDB, o PSDB, só agora apresentam sinais de vitalidade. Na farra das siglas, o Partido dos Trabalhadores fincou estacas na novidade da primeira legenda criada de baixo para cima.
Em trânsito por vias tumultuadas, a cobertura parlamentar e da atividade política purgou os seus pecados e principalmente os alheios dos muitos cortes traumáticos. O modelo forjado pela geração de 46, o mais amplo, como exigia a curiosidade popular depois de anos de jejum da censura, durou até a mudança da capital do Rio para Brasília, em 21 de abril de 1960. Foi decepado com o golpe de facão cego da mudança para a capital em obras.
Reconheça-se que o esquema caducava com sinais de velhice. Seções fixas para a extensa reportagem diária das atividades do plenário reclamavam atualização, mas não mereciam o enterro em cova rasa. A desmoralização do Congresso pela ditadura e pelos seus desatinos sabidos secou a fonte de informações, que se transferiu para o Palácio do Planalto. A atual fase democrática valorizou a reportagem política.
Estamos às vésperas de novo e estimulante desafio. Com todos os encantos da inauguração do nunca visto. O Congresso, que se instala a 15 de fevereiro, renovado em cerca de metade, com muitas surpresas na definição das bancadas, refletirá a troca de sinais no poder. Com a bancada do governo, liderada pelo PT e engrossada pelos aliados e aderentes, ocupando mais de um terço do plenário da Câmara e um espaço menor no Senado. E o encalistrado grupo dos derrotados baldeando-se com a bagagem conservadora para a oposição. Pelo meio, o baixo clero sem compromissos partidários, negociando apoio no balcão variado dos interesses.
Congresso desentortado – com equilíbrio de forças entre o governo de esquerda e a oposição centrista, nos quatro anos do governo de Lula, de compulsória e intensa negociação para a aprovação das reformas dos compromissos de campanha, reafirmados pelo presidente eleito – vai tomar injeções de óleo canforado nas veias, engolir pílulas de modernas drogas estimulantes e reconquistar a sua legitimidade de fórum das articulações políticas.
O passado só volta no saudosismo dos velhos. Mas o Congresso vai recuperar sua importância, com a vivacidade dos debates que popularizam as votações do interesse do governo. E cobrará da imprensa a cobertura afinada com as exigências da sociedade.
Não se imagina a ressurreição da cobertura caudalosa, com espaços cativos para a atividade das comissões, do plenário e da rotina dos partidos e das articulações.
A necessidade estimulará a criatividade para a recauchutagem da velharia, corroída pela ferrugem e empilhada na sucata do ferro-velho."
"Boas novas", copyright Folha de S. Paulo, 1/12/02
"A melhor novidade até agora resultante da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva não mereceu no jornalismo político mais do que o tratamento comum aos assuntos de dia a dia. A novidade está nos dois princípios fixados para o preenchimento de cerca de 20 mil cargos na administração federal, princípios capazes de gerar efeitos amplos e benéficos para toda a população e para a eficácia de toda atividade produtiva. E ainda impor uma transformação moralizante na política, nos partidos e no Congresso.
O preenchimento de cargos, em um mesmo ministério, por pessoas de diferentes ligações partidárias ou sem ligação alguma, acaba com o sistema – como logo notou Tereza Cruvinel, muito mais atenta e preparada do que o padrão do jornalismo político – de posse vertical e integral de um ministério pelo partido do seu ministro. Transformados, desde o fim do regime militar, em instrumentos eleitorais com ramificações pelo país todo, os ministérios afinal deixam de sê-lo. Devem começar a ser apenas ministérios.
Dessa observação deve-se deduzir outra de igual importância: o sistema de negociação fisiológica e mercantil, entre governo e partidos negociadores do seu apoio, perde o sentido. Fazer um ministro ganha significado político e proporciona projeção partidária, em lugar dos favorecimentos diversos que têm aviltado a política e o Congresso. Logo, os partidos fisiológicos que têm predominado estarão forçados a se aproximar, com o tempo, do que são partidos políticos.
Se esvaziadas as razões fisiológicas e negociais para rechear a espinha dorsal dos ministérios, já daí poderia advir alguma melhoria na máquina administrativa. Tal possibilidade se engrandece, porém, com o segundo princípio estabelecido para as nomeações: serão, preferentemente, colhidas no próprio funcionalismo publico. É o pessoal que conhece a máquina da burocracia, sabe como lhe dar eficiência e inclui um corpo de técnicos capazes, em todos os setores. Apesar disso, desvalorizado e desprestigiado.
A recuperação do serviço público como carreira é indispensável para dotar o Brasil do único dispositivo, como se vê em todos os países desenvolvidos, capaz de dar à estrutura da administração pública a eficiência permanente, do alto a baixo, e inabalável com mudanças de governo ou períodos problemáticos. Nas razões do crescimento espantoso alcançado por Coréia do Sul, Tailândia e outros asiáticos, enquanto o Brasil ficou patinando, é sempre destacada a importância da estrutura e do sentido profissional dados ao serviço público, como ativador dos projetos públicos e privados.
Medidas de Roberto Campos no Planejamento, entre 64 e 67, começaram a extinguir o sentido de carreira, até de simples profissão, no serviço público. No governo Fernando Henrique tudo se passou como se a meta fosse extinguir o próprio serviço público, pela extinção do servidor acossado por arrocho de oito anos, aumento das deduções, os anos do terrorismo de Bresser Pereira, a sustação das atividades por corte de verba e tanto mais.
Retirar pelegos políticos da máquina administrativa será um avanço promissor. Devolvê-la aos servidores públicos pode dar início a uma nova visão da importância, para a população e para o país como todo, de um serviço público reconhecido como tal.
O método
Caso o embaixador Celso Amorim venha a ser ministro das Relações Exteriores, como os jornais noticiam, terá sido caso único até agora. O de alguém convidado publicamente para conversar com Lula da Silva, em meio à operação sigilo total, e tornar-se ministro. O método tem sido outro, e nem começa pelo próprio presidente eleito. (O embaixador, aliás, negou o convite).
Aos que chegam a ser convidados não é poupada a advertência de que a discrição deve ser plena – embora isso não impeça que um ou outro não a tenha, guardadas certas cautelas."
FARC & BEIRA MAR
"O Autêntico ?Número Um?", copyright O Globo, 30/11/02
"No Brasil, a propaganda americana pretende vincular as Farc com personagens sem importância no tráfico internacional, como Fernandinho Beira-Mar – afirma Walter Maierovitch, ex-chefe da Secretaria Nacional de Combate às Drogas. Para acabar com isso, ele escreveu, na revista ?Carta Capital? de 6 de novembro, um artigo que promete revelar o verdadeiro chefão por trás do mercado de drogas. Trata-se de Diego Montoya, chefe do Cartel do Vale Norte. Segundo Maierovitch, ele é ?o número um do tráfico internacional de drogas?. Foi condenado à prisão perpétua nos EUA e está com a cabeça a prêmio. No entanto, o governo americano, que em 1993 montou uma eficientíssima operação para prender Pablo Escobar, hesita em fazer o mesmo com ele, ?pois são conflitantes muitos dos interesses políticos em jogo?. Montoya não tem nada a ver com as Farc. Ao contrário, é um dos principais financiadores dos paramilitares de direita, dos quais o presidente Álvaro Uribe ?sempre teve fama de aliado?. E Uribe é amigo dos americanos.
Eis aí, de um só golpe, virado do avesso o quadro do que julgávamos saber do narcotráfico. As Farc vão para um modesto lugarzinho no canto do cenário, Beira-Mar dissolve-se na poeira do irrelevante, e o centro do palco passa a ser ocupado por uma conspiração direitista unindo o Cartel do Vale Norte, o presidente da Colômbia e, evidentemente, ?os americanos?.
Como performance jornalística, parece impressionante. Pena que é tudo falso. Maierovitch cita como fonte de suas afirmações um documento obtido no site da Drug Enforcement Administration (DEA). Mas, no próprio trecho reproduzido na revista, Montoya não consta como ?número um? do tráfico mundial, nem do tráfico colombiano, nem mesmo do Vale Norte, mas apenas como ?um dos? chefes de ?um dos? grupos de ?uma das? organizações que dominam ?uma das? regiões da Colômbia.
Isso é que é jornalismo: publicar, na mesma página, uma afirmação categórica e o documento que a invalida. Nem no parágrafo citado nem no restante do seu site a DEA dá o menor sinal de ter acreditado algum dia que Montoya fosse ?o? poderoso chefão do narcotráfico mundial.
Do exagero, Maierovitch passa ao erro puro e simples quando atribui à ?propaganda americana? a afirmação de um vínculo entre Fernandinho Beira-Mar e as Farc. Pois essa afirmação veio da boca do próprio Fernandinho e ainda foi confirmada, segundo a nossa Polícia Federal, pela agenda apreendida em poder do traficante, com os apontamentos de sucessivas trocas de armas por drogas entre ele e as Farc. Foi por meio dessas fontes, e não de alguma ?propaganda americana?, que o público brasileiro ficou sabendo da conexão Fernandinho-Farc. Se algum americano disse algo a respeito, suas palavras não tiveram na mídia brasileira um milésimo do destaque concedido a essas revelações factuais explosivas.
Para complicar ainda mais as coisas, o único indício que Maierovitch nos dá de uma participação de Montoya no mercado brasileiro de drogas é que ?a heroína que começou a chegar ao Brasil provém de papoulas cultivadas nos seus campos e refinada nos seus laboratórios?. A pergunta é: como Maierovitch ficou sabendo disso? Para saber de onde veio um carregamento de drogas é preciso encontrar pelo menos um dos seus transportadores ou intermediários, obtendo dele uma confissão ou outro indício qualquer. Bem, cadê esse sujeito, cadê esse indício? Ninguém sabe, ninguém viu. Tudo o que o articulista nos informa é que o intermediário seria um tal de Pedro Brá (abreviatura de ?Brasil?). E quem é Pedro Brá? Responde o próprio Maierovitch: ?Desconhece-se até hoje a identidade real de Pedro Brá.? Raras vezes a falta de provas foi proclamada de maneira tão eloqüente.
Para tentar salvar algo da hipótese que faz de Montoya o ?número um?, faltaria perguntar: e no mundo? Qual a participação de Montoya no narcotráfico mundial? Mas aí Maierovitch perde sua última chance, arruinando o que ainda pudesse restar de seriedade na sua argumentação. A Colômbia, diz ele, exporta mais ou menos 1.200 toneladas de cocaína por ano – 85 por cento do que se consome no planeta (aproximadamente 1.400 toneladas). Ele assegura também que antes de 1999 Diego Montoya já tinha exportado para os EUA mais de mil toneladas de cocaína em um ano. Poucas linhas adiante, acrescenta que a Colômbia envia anualmente 650 toneladas de cocaína à Europa. Como ninguém pode enviar mil toneladas para cá, mais 650 toneladas para lá e achar que exportou 1.200 toneladas, devemos concluir, ou que desde 1999 o ingresso anual de cocaína colombiana nos EUA diminuiu de mil toneladas para 350 – e ninguém deu essa maravilhosa notícia ao pessoal da DEA – ou que os 15 por cento não colombianos da coca circulante no mundo foram para os EUA, deixando o resto da humanidade na mais hedionda síndrome de abstinência e cobrindo o déficit local de 65 por cento de mil toneladas, segundo o princípio de que 200 toneladas = 650 toneladas.
Detalhe assombroso: se, do total de 1.200 toneladas de cocaína colombiana, mil vão para os EUA e 650 para a Europa, quanto sobra para o sr. Montoya vender ao Brasil? São, por ano, 450 toneladas a menos. O produto que ele nos tem vendido, portanto, só pode ser cocaína negativa, anticocaína ou falta de cocaína. Supondo-se que o ?poderoso chefão? tenha entrado no mercado nacional em 1999, ele já está nos devendo 1.800 toneladas de pó. Estamos ricos.
Já vi a mídia brasileira fazer de tudo para inocentar as Farc e lançar a culpa integral do narcotráfico sobre os ?paramilitares de direita?: falsear documentos, alterar datas, forjar declarações e apelar a todos os ilogismos. Dinamitar a aritmética, nunca vi. Maierovitch é, nisso, o autêntico ?número um?."