COBERTURAS "AO VIVO"
Luiz Gonzaga Motta, de Barcelona (*)
Na semana passada, o presidente da Rússia Vladimir Putin chegou a um acordo com os diretores dos principais canais de TV de seu país para estabelecer normas da cobertura pela televisão de atos violentos com riscos para as vítimas, como seqüestros e ações terroristas. O acordo foi celebrado em uma reunião de última hora, pois Putin estava disposto a baixar uma lei que regulamentava as coberturas desses atos pelo poder executivo. O projeto já havia sido aprovado pelas duas câmaras do parlamento russo, faltando apenas a assinatura do presidente para entrar em vigor. Os diretores dos canais de televisão pediram então a reunião e se comprometeram a estabelecer eles mesmos uma regulamentação para tais coberturas, com participação do executivo e do parlamento no grupo de trabalho que finalizará os detalhes.
O projeto é anterior à invasão do Teatro Dubrovka, há cerca de dois meses, pelos ativistas chechenos, que ameaçavam matar 700 reféns caso o presidente não ordenasse a retirada de tropas russas da Chechênia. Neste evento, depois de longas negociações e muita tensão, as autoridades policiais injetaram gás paralisante pelos dutos do ar condicionado e as tropas invadiram o teatro, com um grande número de mortos. Parte dos acontecimentos foi mostrada em detalhe pelas emissoras russas. Com a repercussão das trágicas ações no teatro, a tramitação do decreto regulamentando a cobertura da TV de atos terroristas se acelerou, e foi rapidamente aprovado. Putin havia anunciado que assinaria imediatamente a restrição às coberturas porque um dos canais de TV de Moscou havia levado ao ar a movimentação das unidades de intervenção especial quando elas se preparavam para invadir o teatro, o que podia ter comprometido a surpresa das operações de resgate dos reféns.
O presidente acusou o canal de televisão de haver ignorado as normas do comitê que dirigia as operações e o acordo feito antes com o Ministério da Imprensa. Indignado, o presidente russo acusou aos dirigentes e jornalistas deste canal de agir contra as normas de segurança com o intuito de capitalizar o evento, incrementar a audiência e, em última instância, ganhar mais dinheiro. Putin disse que este fim não pode prevalecer sobre o risco de vida das pessoas e o sangue dos cidadãos. Para ele, as armas dos terroristas não são as balas nem as granadas, mas a chantagem ao Estado e o apoio que ganham para as suas ações quando os atos terroristas e os seqüestros são convertidos em espetáculos públicos através da cobertura das emissoras de televisão.
Independente dos detalhes, o debate que está ocorrendo na Rússia traz a oportunidade para uma reflexão sobre a conveniência e a qualidade das coberturas ao vivo desses acontecimentos pela televisão, os riscos e as dimensões que proporcionam aos atos de violência. No Brasil não temos ações terroristas, mas assistimos nos últimos anos a alguns seqüestros e rebeliões com características muito parecidas com os atos terroristas amplamente televisionados ao vivo e a cores para todo o país, alcançando enorme repercussão. Para refrescar a memória, podemos lembrar aqui algumas ocorrências de violência urbana amplamente televisionadas nos últimos anos, com repercussões nacionais.
1) Há três anos, tivemos uma ampla e continuada cobertura pela Rede Globo de Televisão do seqüestro de um ônibus urbano no Rio de Janeiro por um marginal que manteve inúmeras pessoas reféns horas seguidas. As câmaras mostraram tudo durante horas continuadas, provocaram enorme comoção em todo o país, transmitiram a rendição do seqüestrador (que morreu dentro de uma viatura policial posteriormente) e a morte de uma das reféns por um policial no ato da prisão do marginal. Mais recentemente, em São Paulo, todos os canais de televisão do país proporcionaram forte tensão aos seus telespectadores, permanecendo durante horas em frente a casa do empresário Silvio Santos, onde ele era refém do seqüestrador de suas próprias filhas, transmitindo ao vivo os menores detalhes dos acontecimentos (o seqüestrador também morreu posteriormente, na prisão).
2) Talvez o episódio mais trágico de todos tenha sido a rebelião simultânea em 30 presídios de São Paulo, fartamente transmitida pela rede de Sílvio Santos durante o programa "Domingo Legal" do Gugu, em fevereiro do ano passado. As câmaras transmitiram ao vivo e a cores cenas chocantes da rebelião do Presídio de Carandiru, mostraram tiroteios, formação de barricadas, incêndios, corpos mortos sendo arrastados e deixando rastros de sangue no chão, as negociações midiáticas entre presos e autoridades. Tudo em "direto" na tarde de domingo, com repórter ao vivo, câmara na mão, imagens de helicóptero, microfones reproduzindo tudo e trilha sonora condizente, para "criar um clima."
Essas transmissões diretas transformaram fatos violentos da vida real em transmissões de espetáculos dramatizados, com tonalidades cinematográficas. Os modernos recursos tecnológicos à disposição das emissoras de televisão, tais como as unidades móveis, câmaras minúsculas, helicópteros equipados, microfones super sensíveis, facilidades de retransmissão e outros recursos tornaram possível a transmissão ao vivo de qualquer evento em qualquer lugar do planeta, amplificando detalhes. Mais ainda, toda esta parafernália impensável até pouco tempo atrás proporciona às emissoras a possibilidade de dar às coberturas ao vivo um clima de ficção, de acrescentar imediatez e aumentar a emoção: o telespectador participa do evento: simultaneamente, torce, aprova, condena e julga durante o desenrolar dos acontecimentos, como no teatro, no circo ou no estádio. Jornalismo e diversão se misturam, torna-se difícil separar o que é realidade e o que é ficção. Com isso, as transmissões diretas da violência urbana ganharam uma "estética do ao vivo" que emociona, eletriza e prende a audiência. Pontos certos no Ibope, faturamento maior na contabilidade. A introdução da trilha sonora é um testemunho da manipulação oportunista da dor alheia para aumentar a audiência e ganhar mais dinheiro, como acusa o russo Putin.
Há, no entanto, algo ainda mais grave nas transmissões ao vivo da violência urbana pelas emissoras de televisão. Ao transmitir as ocorrências durante o seu desenrolar por horas seguidas, as imagens da televisão transformam todos em atores do acontecimento, que em si mesmo se torna um grande palco. Apresentadores, repórteres, técnicos, marginais, policiais, reféns, autoridades, grupos organizados, telespectadores individuais, todos sabem que podem interferir por meio de suas falas ou ações sobre os eventos. Todos esses atores adquiriram nos últimos anos uma consciência midiática e jogam para a mídia. Todos sabem que estão sendo assistidos por milhões de pessoas e isto modifica acentuadamente os comportamentos que tomam como parâmetros as imagens dos seus atos, não os atos em si mesmos, mas as necessidades sociais da situação ou a resolução dos conflitos.
Esta simultaneidade transforma todos em atores e suas ações não são mais atos naturais, mas performances para o grande circo geral em que as transmissões ao vivo transformam os acontecimentos. Os eventos adquirem uma dramaturgia própria, uma estética que não é apenas visual mas, performática, uma estética da representação midiática. A vida se transforma em palco: as tragédias estão sendo vividas, representadas e assistidas simultaneamente por todos nós, atores e espectadores de nós mesmos. Esta constatação tem uma importância especial para as ocorrências da violência urbana transmitidas ao vivo porque os participantes dos eventos têm consciência da presença das câmaras, do seu potencial e das possibilidades do seu uso intencional, tirando proveito disto independente de suas dolorosas repercussões.
Transmissão vira evento
Na transmissão "jornalística" da rebelião de Carandiru pelo programa do Gugu, todos agiram como atores e tiraram proveito da presença das câmaras na transmissão ao vivo. Os presos agiram performaticamente ao agitarem lençóis brancos através das grades, ao escreverem nomes e mensagens no chão para serem filmados de cima, agiram performaticamente nas negociações. No interior do presídio, os presos acompanhavam o tempo todo as transmissões, assistiam às suas próprias imagens e se orientaram para as câmaras, modificando o curso dos eventos. A transmissão passou a ser, em si mesma, o evento. Diretores e produtores do programa agiram performaticamente ao colocar câmaras ao vivo no helicóptero estrategicamente posicionado, ao incluir uma trilha sonora que ampliava as dimensões emocionais dos eventos. O apresentador Gugu agiu midiaticamente ao identificar a cantora Simony entre os reféns e transformar o seu reconhecimento e o do seu marido presidiário em um jogo para os telespectadores e o auditório performaticamente arrematava com palmas, completando assim o grande circo da notícia.
Essas questões trazem reflexões que os homens da mídia, jornalistas, policiais, juristas, psicólogos, pedagogos, pais de família, acadêmicos, parlamentares e autoridades precisam discutir imediatamente. Até onde as emissoras de TV, em nome da liberdade de expressão, têm o direito de continuar transformando a violência urbana em espetáculo? Até onde eles têm o direito de transformar a dor e os dramas alheios para aumentar audiências e ganhar mais dinheiro? Até onde, em nome do jornalismo, eles têm o direito de cobrir com lógica comercial eventos tão controvertidos e delicados?
Com a experiência acumulada pelos debates que essas transmissões geraram, seria melhor discutir o problema agora, levar em conta as questões éticas e pedagógicas, antecipar as decisões e fazer acordos antes que seja necessário tomar medidas coercitivas no Brasil, como foi na Rússia. Em nosso país, os debates sobre estas questões estão limitados a círculos restritos, as discussões ainda não sensibilizaram os parlamentos e as autoridades nem as associações de pais e mestres e outras entidades da sociedade civil com a dimensão que requerem.
A censura é um caminho pouco indicado e de triste memória em nossa história recente. Se o caminho é limitar a cobertura impondo restrições, que seja respeitado o interesse profissional dos jornalistas, mas com responsabilidades bem definidas. Até porque reportar os fatos não é só uma atividade profissional, é um dever dos jornalistas nas democracias saudáveis. Mas, os diretores das emissoras e jornalistas não podem continuar reivindicando liberdade total e utilizar critérios de cobertura que não obedecem a valores jornalísticos e sim a índices comerciais de audiência. As questões não podem restringir-se à simples condenação verbal e muito menos ao desprezo e à ignorância do tema, como se ele nada tivesse a ver com cada um de nós. Se queremos ser uma sociedade responsável, o tema precisa entrar agora em nossa agenda de prioridades, antes que seja tarde.
(*) Jornalista e professor da UnB, atualmente fazendo pos-doutoramento em Barcelona