Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Visões de uma cidade em transe

PARAÍSO ARMADO


Paraíso armado ? Interpretações da violência no Rio de Janeiro, de Aziz Filho e Francisco Alves Filho, Editora Garçoni, Rio de Janeiro, 2003, 288 pp.


[do release da editora]

Escrito pelos jornalistas Aziz Filho e Francisco Alves Filho, que trabalham na sucursal carioca da revista IstoÉ, Paraíso Armado trata a criminalidade com abordagens nada tradicionais. A partir de entrevistas com os maiores especialistas no assunto e, pela primeira vez, reunindo os quatro últimos governadores, responsáveis pela política de segurança, o livro esmiúça a violência no Rio de Janeiro sob prismas variados. Sobre Paraíso Armado, o jornalista Jânio de Freitas afirma: “É mais do que uma coletânea de entrevistas. É jornalismo de alta qualidade: útil, inteligente e sério.”

Nos últimos 20 anos, a escalada da criminalidade mudou o Rio de Janeiro, amedrontando a cidade de paisagens apaixonantes e povo acolhedor. O enredo dessa transformação começou no início dos anos 80, com a explosão do confronto entre Comando Vermelho e Terceiro Comando, e culminou com os atentados de Beira-Mar em Bangu I no ano passado. Em duas décadas, reflexões e ações de vários tipos buscaram soluções para o drama. Paraíso armado traz entrevistas reveladoras com 18 personagens estratégicas. A questão é dissecada num mosaico inédito. Pela primeira vez um livro consegue reunir os depoimentos dos ex-governadores Leonel Brizola, Moreira Franco, Marcello Alencar e Anthony Garotinho sobre o tema.

Outras entrevistas mostram que segurança pública não é assunto apenas de gabinetes oficiais. Basta ler o que disseram os condenados José Carlos Gregório, o Gordo (depoimento inédito dado um ano antes de sua morte, em 2001), e Lívio Bruni, além de uma moradora de favela e de um oficial da PM, cujo relato é a tradução perfeita da tragédia que é guerrear o crime organizado hoje. “Os jovens que estão no tráfico consideram como know-how dizer que balearam um PM”, diz o policial. Em outro front, o depoimento de um cidadão de classe média alta que não confia na proteção do poder oficial e entregou ao poder paralelo do tráfico a segurança da própria família.

Paraíso armado é mais do que uma coletânea de entrevistas. É jornalismo de alta qualidade: útil, inteligente e sério”, diz o jornalista , no prefácio.

“A reunião das entrevistas forma um conjunto de diferentes ângulos de informação e de interpretação, que se contrapõem ou se completam, e proporcionam a possibilidade de deles extrair-se uma ponderação também de conjunto do problema”, diz Janio de Freitas. “Não é o fracionamento habitual, desorientado e dispersivo ao ponto de mais conturbar do que elucidar.” Os entrevistados de “Paraíso Armado” analisam a violência em múltiplas áreas de debate ? o mercado de armas, o sistema penitenciário, o criminoso, a polícia, a economia, a lavagem de dinheiro, o comportamento da mídia no processo, o tratamento psicanalítico. Os personagens do livro revelam fatos e informações inéditos, que esclarecem episódios importantes não esgotados pela mídia.

 

A sala assoalhada e de pé direito alto, no fundo de um dos prédios coloniais do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha, é o posto de observação de Muniz Sodré de Araújo Cabral. Dali, o professor e doutor em Comunicação Social pesquisa o comportamento da imprensa brasileira para emitir opiniões bastante críticas sobre o trabalho dos jornalistas. Não só do trabalho: “Não vou dar nomes, mas eu dirigi uma emissora de televisão, não era um caso específico de lá, mas fiquei sabendo como a droga corre no meio. Como se cheira!”, dedura. Quando o assunto é a cobertura da violência carioca, seu conceito é particularmente devastador. Considera que jornais, revistas e TVs estão muito longe de retratar as causas da criminalidade e se limitam a noticiar de forma superficial os casos pontuais, retratam a mera conseqüência. Antes, a cobertura de crimes era envolta em um formato romanceado, lacrimoso. O exagero acabou e hoje, na visão do professor, o tratamento mais enxuto é ditado por parâmetros jurídicos. “É bandido de um lado e lei do outro. Ora, isso nos cega, nos impede de ver também determinadas mediações sociais que existem para o crime e que existem para motivar a não obediência da lei”, critica Muniz Sodré. São muitos os motivos que levam a essa distorção. Eles demandam a discussão da identidade do jornalista e a revisão do modelo de propriedade dos meios de comunicação. O professor sugere que a comunidade passe a influenciar os destinos da informação. “É preciso comunitarizar a imprensa.”

Autor de 25 livros, o baiano Muniz Sodré, 61 anos, é uma espécie de alter-ego da mídia brasileira desde que lançou “A Comunicação do Grotesco”, em 1972. Chegou ao Rio há 47 anos e acha que a cidade é cenário de um tipo peculiar de violência. Quem o procurar por esses tempos vai encontrar opiniões pessimistas quanto ao futuro da imprensa. “Há uma imensa promiscuidade, uma proximidade excessiva de classes sociais com nível de renda muito diferente”, avalia. Considera a classe média carioca cúmplice da droga e a imprensa conivente. “A droga é implicitamente glamourizada. E nós sabemos que o próprio comportamento dos profissionais da mídia de entretenimento é de conivência absoluta com isso”. Afora a mudança radical da engrenagem das empresas de comunicação ? hipótese que considera improvável ?, Muniz Sodré não vê saída para o labirinto que leva a imprensa a perder credibilidade. Ao jornalista que pretende tratar de forma honesta o problema da violência, propõe um parâmetro de conduta: “Não creio que seja uma questão de boa vontade, mas de boa consciência.”

A imprensa tem dado à violência no Rio o tratamento adequado?

Muniz Sodré ? A imprensa focaliza o ato de violência. E violência não é apenas o ato. Você tem duas maneiras básicas de encarar a questão: uma é a violência invisível, que eu chamo de “estado de violência”. A outra é a transgressão da harmonia e da regra social, os ilegalismos. Essa violência invisível, estado de violência, é uma condição estrutural, irrebatível em termos pessoais, causada pela falta de condições humanas ou a falta de resposta das instituições, ligadas ao aparelho de Estado ou não, à população, à cidadania. É violência ter uma antena parabólica num posto de saúde e não ter um esparadrapo nem remédio.

Essa violência a imprensa não cobre?

Muniz Sodré ? Não, ela está preocupada com a violência visível, que se resolve juridicamente, como ilegalismo, com o código penal, cível… A imprensa de hoje se concentra na conseqüência, no efeito, dramatiza o seu discurso, entra numa narrativa com princípio, meio e fim e com efeitos de dramatização. Essa teatralização tem uma história no ocidente moderno, que dramatiza a violência desde o teatro elizabetano, sempre mobilizou a consciência com o sofrimento do outro. A violência nas obras de ficção é um recurso narrativo bastante econômico. Há uma economia discursiva. Você pega um filme, uma ficção, um bem e um mal. Pode tratar o mal de uma forma pacífica, com um pastor fazendo um longo discurso sobre o mal e defendendo o bem. Isso é chato, é longo, não é mobilizador. Você transfere isso colocando um sujeito forte, boa pinta, capaz de atrair adultos e crianças, e ao invés de ele fazer uma longa pregação, ele pega o bandido e dá um murro na cara ou dá um tiro. A violência tem um poder de mobilização imenso, porque ela faz uma elipse na narrativa. Em vez de você pontuar logo ali, você passa de um plano para outro e se resolve ali mesmo a questão do mal. O mocinho bateu no bandido.

Mas há algumas décadas a imprensa romanceava ainda mais a cobertura do ato ilegal…

Muniz Sodré ? Certamente. A imprensa escrita. Não há dúvida de que houve um momento da imprensa em que o jornalismo policial alimentou uma dramatização imensa e isso está desaparecendo. A fase áurea do jornalismo policial colocava o próprio jornalista no centro do acontecimento. O jornalismo talvez até desencadeasse os acontecimentos. É aquela história do “Mão Branca” (personagem desconhecido, provavelmente fictício, que seria autor de vários assassinatos praticados na década de 70 e 80) no Rio de Janeiro. Ali, a imprensa era ator, no sentido sociológico.

Hoje a imprensa escrita é mais objetiva?

Muniz Sodré ? É mais objetiva aparentemente porque, na verdade, ela isola por demais. Quando era dramática, você ainda podia ver a circunstância do aparecimento do crime. Hoje, ela isola o ato. Você tem de um lado a lei e de, outro, a transgressão. E tudo nos parece monstruoso, não há gradações, tudo se reduz ao jurídico. Não há intermediação política ou social, nem mesmo ética. É bandido de um lado e lei do outro. Isso nos cega, nos impede de ver determinadas mediações sociais que existem para o crime e para motivar a não obediência da lei. Com a imprensa objetivamente falando do ato, o que resta do outro lado do ato é a lei. Uma lei, qualquer lei, só se obedece se você segue a regra. A lei em si mesma é uma forma vazia. A regra dá o sentido da lei.

O que é uma regra?

Muniz Sodré ? Uma regra é uma norma comunitária, de cuja construção você partilha e vivencia todo dia sem depender do código escrito. A regra é aquilo que você começa a aprender na comunidade com seu pai, com sua mãe.

Essa cobertura jornalística que isola o ato não é conseqüência inevitável do aumento da violência? Com crimes pipocando em todos os lugares, seria possível ter uma outra abordagem?

Muniz Sodré ? Não sabemos se o crime efetivamente está pipocando em todos os lugares ou se existe uma visibilidade maior desse crime. Se você pega a história da polícia no fim do século 19, o centro do Rio parecia tão inóspito quanto é hoje penetrar no Borel, na Vila do João ou na Maré. Sempre houve no Rio lugares onde não se andava, não se penetrava. Evidentemente, a cidade piorou muito. Quando cheguei aqui, eu andava de madrugada e agora não ando mais. Piorou aos olhos da classe média. Há mais visibilidade do crime e o ilegalismo aumentou por decadência da regra fundamental de obediência à lei. Você sabe que existe corrupção policial, ninguém gosta de polícia em nenhum lugar do mundo, mas você respeita porque é uma regra. Se essa regra for violada, você não tem mais um mínimo de segurança. Esse mesmo policial que vai achacar você, que pode tomar ali no trânsito os 15 reais, tem de manter em determinados instantes a postura dele. É preciso manter a regra. Mesmo que não se goste do governador, deve-se respeitá-lo porque é o governador. Essas regras têm de ser mantidas. O que está ocorrendo com a violência é que as regras acabaram, estão sendo destruídas. Deixou-se de respeitar a polícia.

Qual a conseqüência da passagem da imprensa da dramatização para essa visão jurídica?

Muniz Sodré ? A imprensa se burocratizou no texto e formou uma pauta muito voltada para a classe jornalística, talvez em conseqüência da chegada forte da televisão. A própria tecnologia de escrever mudou com a chegada da televisão. Mas mudou também a reportagem, o próprio interesse do público leitor pela comunidade. Essa imensa concentração de renda faz com que esse fosso seja uma muralha como a de um castelo antigo. O sujeito quer distância total do resto social, é um abandono imenso da classe média para com o resto do território. E a imprensa, principalmente da ditadura para cá, se centrou muito nas páginas de economia, em torno dos investimentos, em torno da diversão, em torno do divertir-se. O social, comunitário, foi abandonado pela classe média carioca. Quem compra jornal é a classe média.

Nos últimos anos não foi retomada essa preocupação social, com a cobertura do trabalho das ONGs, por exemplo?

Muniz Sodré ? Não creio. E não acredito também que essas ONGs tenham função tão efetiva além de dividir um pouco o poder de Estado. Não tenho nenhuma certeza sobre os resultados sociais das ONGs. Sinto apenas que isso alivia a pressão sobre o Estado. A imprensa continua afastada das classes pobres.

Ao noticiar o trabalho das ONGs ela não é obrigada a fazer a ligação entre pobreza e violência?

Muniz Sodré ? É uma ligação não direta. Não existe uma relação de pobreza e violência. A miséria é o meio vital onde a violência pode eclodir, mas não é uma relação de causa e efeito. Muitas vezes a motivação individual pode não ser a pobreza. Muitas vezes a motivação é estética, entendendo estética como estar junto, compartilhado à comunidade. O garoto de 17, 18 anos pode pegar numa AR15 ou pode se tornar um bandido perigoso para ser respeitado pela comunidade, pelas meninas, pela vizinha, para não entrar na fila do pão, do leite, para que não riam dele.

O noticiário estimula esse sentimento de querer aparecer?

Muniz Sodré ? Sem dúvida nenhuma. Na medida que não há mediação, visibilidade social das circunstâncias do ser bandido, fica só o ato ilegal. A imprensa teria um papel grande se fosse mais comunitária e menos societária e se, de algum modo, as matérias não fossem só um relato técnico: lead, sub-lead, sobre o fato que ocorreu. Tratar a violência requer repensar a identidade do jornalista e do jornal hoje. Por que a imprensa é necessária? De onde é que vem todo esse prestígio que atravessou o século 20 e pode estar acabando? Liberdade civil é liberdade de expressão, liberdade de manifestação contra os segredos de Estado. As decisões que afetam todo mundo devem ser conhecidas, é a visibilidade das decisões de Estado que é garantida pela imprensa. Ou que a imprensa tentava garantir. Todo progresso da imprensa no ocidente vai no sentido de visibilidade dos segredos do Estado e ao mesmo tempo de garantir a cada um a liberdade de expressão. Por isso se diz que a liberdade de imprensa é a que garante todas as outras. Mas a imprensa se tornou parte de um conglomerado maior chamado mídia, que virou estrutura de poder. A imprensa é chamada de quarto poder porque brigava com o poder real, mas ela hoje é uma estrutura de poder. Ela recobre o território social por inteiro e, pior, forma um território próprio que não é muito visível. A mídia hoje é forma de vida. É a mídia quem diz o que é realidade e a realidade é uma verdade da mídia. Não é mais uma correia de transmissão entre o poder e o povo.

É possível evitar que a imprensa seja instrumento dos anunciantes, do poder econômico?

Muniz Sodré ? É inevitável, a menos que repensemos a identidade dos jornalistas. O problema é que os jornalistas estão interessados em assegurar seus salários e seus empregos. Isso é muito normal. Não creio que seja uma questão de boa vontade, mas de boa consciência.

Como o Sr. avalia a forma como a imprensa carioca trata a violência?

Muniz Sodré ? Acho que não existe uma avaliação correta de causas e fatores. Não tenho dúvida de que essa multiplicação de crimes e ataques do tráfico se deva a uma ação da polícia, que está barbarizando no morro. A polícia está matando como bandido, seqüestrando para matar, e a imprensa não mostra isso. É freqüente o policial prender e depois mandar dizer para o fulano de tal quanto é que ele vai pagar para soltar o seqüestrado. A intensificação disso provocou reações em princípio parecem compreensíveis. Metralha-se cabines de polícia no Cosme Velho, o palácio tal, a Secretaria. São recados, chamados à negociação. Para mim, é emblemática aquela frase do Fernandinho Beira-Mar quando ele foi embora: “Não precisava isso, bastava negociar.” O aparelho policial está em decomposição e a tarefa da polícia no Rio de é séria demais. Era preciso ter melhores salários, melhor treinamento, e o Estado parece falido para garantir isso. A polícia se tornou fator de corrupção. Então nós estamos falando de bandido e não de polícia. Ela também é bandida, é levada a se tornar bandida. A regra do respeito acaba. Isso é realmente novo, de 20 anos para cá. A cartelização e a cocainização alucina a cidade e se associa com armas poderosas. Uma coisa é o bandido com o 38 na mão, o 32, ou o antigo malandro de morro que ainda tinha seu revólver e uma navalha. Isso é brincadeira diante do que ocorre hoje. Outra coisa é você botar um menino com uma AR15 ou uma Kalashnikov na mão e vários gramas de cocaína na cabeça. Aí você tem uma fera. Ele perde o medo, toda a inibição moral, toda inibição em relação à regra, e vira um matador terrível. O sujeito que cheira cocaína não precisa ser naturalmente corajoso, naquele instante ele se torna onipotente, perde o caráter. O bandido não respeita a comunidade, não respeita a polícia e não respeita mais ninguém.

Os usuários de droga são cúmplices na criação dessas feras ao financiar o tráfico?

Muniz Sodré ? A cocaína muda o comportamento desses garotos e nisso aí a classe média é cúmplice. Essa cumplicidade é nítida nas grandes cidades, mas aqui no Rio é trágica. É a cumplicidade da classe média alta e baixa do Rio de Janeiro com a droga. O sujeito usuário de drogas, que aos olhos da lei seria vítima, aos olhos da regra é cúmplice. Ele é cúmplice, é o financiador. Eu dei uma palestra uma vez sobre isso numa sociedade de jornalistas e vi as mulheres se mexerem nas cadeiras e dizerem que o financiador era o “tubarão”. Eu não preciso ser leitor de pensamento, é claro que o filho está com problema e as mães protegem. Protegem sistematicamente. Portanto, é uma classe média cúmplice. Isso é inédito.

Como a imprensa trata essa cumplicidade? Condena ou glamouriza?

Muniz Sodré ? A imprensa precisa mudar de postura. A droga é implicitamente glamourizada e sabemos que o comportamento dos profissionais da mídia de entretenimento é de conivência absoluta com isso. Não vou dar nomes, mas eu dirigi uma emissora de televisão, não era um caso específico de lá, mas fiquei sabendo como a droga corre no meio. Como se cheira! Pessoas que você conhece de dia marcham na praia de Ipanema contra a morte da menina tal e de noite estão cheirando. A imprensa ignora.

Tivemos uma época de glamourização dos bandidos, como o Mão Banca e o Escadinha. Isso não acabou?

Muniz Sodré ? Eu diria que essa glamourização vem por vias indiretas, com certo estilo de vida, e pela própria forma de investimento no discurso contra. O problema maior nessa glamourização é o enfraquecimento das oposições entre bem e mal. É careta hoje você tomar uma posição e dizer que isso ou aquilo é ilícito, tratar de outra forma a questão da droga. Não é bom. Você é fatalmente expulso do grupo, não é convidado de volta.

É comum o mesmo tipo de fato violento aqui no Rio ter destaque maior do que em São Paulo. Isso é culpa da imprensa do Rio?

Muniz Sodré ? O Rio sempre foi uma caixa de ressonância de fatos culturais, de qualquer fato. Tem vocação para ser tambor, isso aqui é um laboratório social. Há uma aproximação muito grande da cultura popular com a oficial. A cidade é cercada por morros. A gíria da classe média sempre foi a do morro. Há uma imensa promiscuidade, uma proximidade excessiva de classes sociais com níveis de renda muito diferentes. Houve uma explosão urbana descontrolada e o Estado é responsável pela ocupação descontrolada sem assistência ou gerência desde os anos 70. Outras formas de vida se constituíram excessivamente próximas da classe média, das fontes de riqueza, dinheiro. Não há violência maior. A violência é o atrito, é a tensão do atrito. É isso que significa violência, literalmente: tensão do atrito. Essa tensão que encontramos é a violência, uma tensão de contrários. O espaço no Rio é diferente de outros espaços pelo tamanho, o cerco dos morros, a coexistência do espaço muito apertado com o estilo de vida muito diferente. A tensão das diferenças aqui é maior. Em São Paulo, estatisticamente a violência pode até ser maior. O problema é que não divulga tanto quanto aqui.

Essa é a pergunta. Por que se divulga muito mais a violência do Rio?

Muniz Sodré ? Porque São Paulo não tem essa proximidade, a violência lá está na periferia. Tem assalto de banco no centro, mas assalto maior é na periferia. E dificilmente nessa periferia paulista se atira na polícia ou no carro da polícia. No Rio morre muito policial e os carros de polícia estão sendo caçados. A regra foi pro ralo, implodida como as torres de Nova Iorque.

A glamourização da droga é maior na mídia eletrônica ou na imprensa escrita?

Muniz Sodré ? Acho que a televisão está num estágio pior porque há o impacto da imagem. A imagem é uma quase presença, mais afetiva. Vivemos um momento em que a influência da mídia sobre o social é mais afetiva do que racional. Afetiva quer dizer mais sensorial, mais estética do que as palavras. Você nota o desprestígio do argumentativo, do racional, do texto. O sensorial e o afetivo se sobrepõem. Só aparecer em foto do jornal ou na televisão já é uma glamourização. Cada vez mais o sujeito precisa dizer que existe, que está ali. Tem um outro aspecto dramático hoje em dia. A violência já foi ultrapassada e temos a crueldade, da parte da polícia ou do bandido. O ato violento de assaltar tem uma finalidade. “Vou pegar uma caneta de valor com minha AR15 e vou vender e, se você reagir, eu atiro em você. Se não reagir, eu estou querendo a caneta, eu vou embora.” Mas a crueldade é diferente, é algo a mais do que o roubo violento da caneta. É o próprio fato de você ter a caneta, que representa uma parcela da humanidade que, por não ser a minha, eu odeio. Então não basta a caneta. É a lógica do terrorismo. Quando aquele cara botou gás no metrô de Tóquio não queria atingir determinadas pessoas, mas a humanidade, e dizer: “olhem para mim”. O terrorismo precisa da mídia. O bandido de hoje, que é cruel, também precisa que seus atos repercutam.

O Sr. vê a possibilidade de a imprensa mudar e parar de cobrir o ato sem prestar a atenção no todo, como o Sr. diz?

Muniz Sodré ? Quando ela passa a vender e a ser empresa, com sua própria sobrevivência, seu lucro, não sei. Pode ser que tenha apenas um compromisso com seu próprio sistema comercial. Que o jornalismo seja apenas suporte.

A comercialização pode tomar conta da imprensa completamente?

Muniz Sodré ? Esse tempo já chegou.

Mas ela pode se alimentar apenas da ilusão que cria para vender?

Muniz Sodré ? Uma coisa é o verdadeiro, outra é o verossímil, o que parece verdade. O verdadeiro é chato e a imprensa já é verossímil há muito tempo porque busca credibilidade, não a verdade. Ela quer ser crível e para isso ausculta a comunidade. O problema é que a imprensa está tecnicamente se isolando muito. O país está em uma crise desgraçada, vem uma revista e bota na capa como é que mulher goza! E fica discutindo quem é que goza mais, se o homem ou a mulher, se é melhor você tomar alho, Viagra ou coisa nenhuma. Isso tem alguma importância, mas os médicos já resolveram. É uma alienação completa. A imprensa escrita diária empurra o leitor para o entretenimento, o Caderno B, somos tomados pela cultura do espetáculo. A realidade tende a ser espetacularizada. A sociedade brasileira está precisando de uma injeção de comunidade. É preciso estudar e planejar mais seriamente a questão da comunidade. Essas ONGS, sem dúvida, podem ter um papel. O modelo de sociabilidade em cima do qual se construiu a imprensa está acabando no mundo todo. Isso é sentido mais em alguns lugares do que em outros. No Brasil eu diria que é preciso comunitarizar a imprensa, ou seja, mudar o regime de propriedade dos meios de comunicação. Sabemos que isso é praticamente impossível. Mas pode-se fazer algo talvez via ONGS, via inserções no aparelho de Estado, numa rede pública, estatal de televisão. E que pressionaria a imprensa, numa espécie de contra-linguagem, para escapar do regime estritamente comercial de alienação.

O Sr. reconhece que essa proposta é utópica. Fora essa mudança radical, não há outra saída para o jornalismo voltar a cumprir seu papel?

Muniz Sodré ? Sinceramente, não vejo.