FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Marcelo Salles (*)
Éramos 30 mil. Acampados.
Vivíamos em perfeita harmonia, respeitando as muitas diferenças que existiam entre os participantes, vindos de mais de 100 países. E mais, estávamos totalmente inseridos na proposta de autogestão feita pela organização do Acampamento Intercontinental da Juventude. Estabelecemos equipes que ficaram responsáveis por cada um dos lotes, separamos o lixo para que a reciclagem fosse facilitada, criamos rondas noturnas para impedir que as barracas fossem furtadas etc.
Um outro mundo era possível, claro. Durante aqueles dias, o outro mundo já estava presente em nosso dia-a-dia. Até o momento em que uma jovem foi para o chuveiro. A repressão policial não tardou em aparecer.
Uma índia mapuche tomava banho tranqüilamente, nua, como fez durante toda sua vida. A polícia "civilizada" fez questão de apontar-lhe o cassetete para lembrar que o homem branco havia inventado algo chamado "atentado ao pudor". A indiazinha podia até ter perguntado se as agressões cometidas contra as índias pelos homens brancos "civilizados" não poderiam ser classificadas de atentado ao pudor, ou se aquele cassetete apontado em sua direção não poderia ser considerado um ato de atentado ao bom senso. Mas, diante da violência com que foi tratada, ficou quieta e obedeceu.
Para as 21h do dia seguinte, no mesmo chuveiro, foi marcada uma manifestação em repúdio à agressão policial. Cerca de 50 pessoas, inicialmente, despiram-se completamente (este número chegaria a 400 mais tarde). À volta, inúmeras pessoas vestidas apoiavam o protesto, tiravam fotos e muitos acabavam tirando a roupa para se unir à manifestação.
Do chuveiro, a marcha seguiu para a fogueira acesa no centro do acampamento. De lá, decidiram estender o protesto às ruas da cidade, em direção ao anfiteatro Pôr-do-Sol. A estudante de cinema da UFF Juliana Gontijo, 22 anos, conta que os manifestantes estavam sendo apoiados e bem-recebidos pelas pessoas nas ruas: "Ninguém se sentiu ofendido. Uma senhora até me parabenizou pela atitude."
Foi então que chegou a Brigada Militar, a guarda montada, além de duas motos e uma viatura. Todo este efetivo para reprimir uma manifestação pacífica, composta por pessoas nuas e desarmadas. A polícia encurralou os manifestantes e começou a avançar com os cavalos como forma de impor sua força. Neste ínterim, alguém que estava fora da manifestação atirou um objeto contra os policiais. A reação foi dura e imediata. Enquanto os cassetetes quebravam ossos, as espadas da guarda montada zuniam no ar e em quem estivesse na frente. Tatiana Calandrino, estudante de Direito da UFF, 19 anos, que também aderiu ao protesto, viveu o desespero de ver um homem ser atingido na nuca por um golpe de espada: "Ele sangrava. Sangrava muito. Depois disso, só me restou correr."
Leis caducas
Saldo da selvageria, estimado por fontes não-oficiais: três desaparecidos e cinco gravemente feridos, sendo um deles menor de idade.
A violência policial choca, incomoda e revolta. Mas o total desinteresse da grande imprensa por este fato é, no mínimo, questionável. Durante o evento, pouco se falou sobre as propostas que estavam sendo discutidas neste terceiro Fórum Social Mundial nos maiores veículos do país. O protesto em defesa da índia, então, quase não apareceu. E quando aparecia, a polícia nunca era vista como culpada. Era como se os manifestantes nus pudessem oferecer um grande perigo à sociedade, à ordem estabelecida.
A situação pode ficar ainda mais contraditória se pensarmos da seguinte maneira: se eu tirar a roupa na rua apanho, vou preso. Se eu desviar 36 milhões do erário respondo em liberdade até que as pessoas esqueçam. Depois, volto à ativa.
As leis estão caducas e muitas delas precisam ser revistas. Até porque, como cantavam os manifestantes, "Você aí parado, também nasceu pelado!"
(*) Estudante de Jornalismo da UFF