Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Walter Ceneviva

CENSURA TOGADA

"Liberdade de manifestação e intimidade: a angústia", copyright Folha de S. Paulo, 1/6/02

"Temas recorrentes das relações dos meios de comunicação com a sociedade e com o Judiciário geraram debate intenso no recente seminário promovido pela Associação Nacional de Jornais. Alcançou especial destaque em virtude da presença do ministro Marco Aurélio de Mello, na dupla condição de presidente do Supremo Tribunal Federal e interino da República. A amplitude dos ângulos discutidos mostrou grande cuidado no exame da alternativa proposta pelo embate entre intimidade e informação livre.

O drama da discussão sobre o fio da navalha entre a proteção da imagem, da vida, da honra e da privacidade das pessoas e a liberdade plena de manifestação do pensamento e de crítica (o direito-dever de informar) não será resolvido de modo objetivo, matemático ou milimétrico, pois só encontra soluções pontuais, caso a caso. Dois lados, ao menos, ficaram muito claros na opinião da maioria: o fio da navalha deve ser discutido à exaustão, para preservar simultaneamente os valores de cada lado. Também predominou forte crítica à tendência da ?indústria do dano moral? e sua contrapartida odiosa, a do enriquecimento sem causa.

Mesmo que reconheçamos a impossibilidade de propor soluções genéricas, uniformes, nem por isso ignoramos o bom passo de determinar certos parâmetros, orientadores das duas vertentes. Na concepção social do Direito, o primeiro ponto a ser discutido -e o leitor pode propor o debate entre os seus- está em saber o que prepondera: o direito individual ou o direito da sociedade como um todo. O dilema é fácil de explicar. O direito à privacidade é tipicamente individual, resolvido pessoa a pessoa, de acordo com sua sensibilidade. O direito-dever da informação pertence à coletividade, sua principal beneficiada, como receptora das fontes emanadoras da notícia, os meios impressos ou eletrônicos. O benefício coletivo tem particular força quando revela efeitos bons e maus da ação governamental na União, nos Estados e nos municípios, impondo o cumprimento da transparência.

Para decidir sobre a preponderância dos dois valores em confronto, devemos colocá-los na balança. O interesse social predomina como regra. Há necessidade, no mundo moderno, de propiciar ao povo o acesso completo aos fatos públicos. Povo que, como se sabe, é o dono de todo poder e do direito que o assegura. Mas, perguntará o leitor: será lícito sacrificar a vida de uma pessoa e até condená-la a uma espécie de morte social com a divulgação irresponsável de fatos que se sabem ou se vêm a saber falsos total ou parcialmente? A resposta impõe opção que parece clara. Num primeiro momento, prepondera a idéia fundamental da liberdade de manifestação. Se a verdade afinal for diversa, mostrando que o levantamento informativo não foi adequado (pode até ter sido desonesto) e que a divulgação foi irresponsável, o divulgador deve ser punido. Civil e criminalmente. A empresa responde na parte civil e o autor da versão errônea responde pelo eventual crime.

Estabelecido o primeiro paradigma, deve-se partir da inafastável constatação da indenizabilidade dos danos materiais e morais. Dano é sempre prejuízo econômico ou não-econômico. Prejuízo concreto, efetivo, não-imaginário, sofrido, sujeito a prova. O dano material é mais fácil determinar. Para configurar dano moral, é preciso que seus elementos essenciais estejam presentes na versão de quem o alega. A Constituição dá a linha básica. Em cada caso, a resposta para perguntas que o juiz há de responder, ao proferir sua sentença, deve ser buscada com cuidado. As perguntas e as preocupações geradas ficam para a próxima coluna."

 

"Opinião suprema", copyright Época, 03/06/02

"O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) José Paulo Sepúlveda Pertence foi o primeiro procurador-geral da República nomeado depois dos 21 anos da ditadura militar, em 1985. Ex-líder estudantil, ele é um aplicado defensor da liberdade de expressão. Para esse mineiro de Sabará, proibir a divulgação de informação jornalística apenas porque há notícias de que um fato contraria interesses é pior que censura prévia. Na opinião de Sepúlveda, se os dados apurados pela imprensa são idôneos e não estão relacionados à vida íntima e privada de uma pessoa pública, nada justifica que a sociedade deixe de tomar conhecimento do fato. ?A liberdade de informação desempenha papel importante na investigação de ações criminosas?, diz. No fim dos anos 80, Sepúlveda teve papel fundamental na formulação da nova estrutura do Ministério Público Federal. O ministro critica abusos, passionalismos e o que classifica de ?síndrome dos holofotes? de alguns procuradores. Mas explica que são como pecados menores – ?O saldo da atuação dos procuradores é imensamente positivo?, avalia. Na quinta-feira, Sepúlveda recebeu ÉPOCA para uma entrevista. Falando sempre em tese, sem tratar de detalhes específicos, o ministro lança luzes que ajudam a entender casos recentes contra a imprensa – como as fitas que comprometiam o presidenciável Garotinho, que O Globo não pôde publicar, e a decisão de recolher os outdoors de ÉPOCA em função de denúncias sobre a Igreja Renascer em Cristo.

ÉPOCA – Se uma autoridade acusada de corrupção lhe pedisse para proibir a publicação de uma reportagem, qual seria sua resposta?

Sepúlveda – Não, por uma série de razões. Obter uma proibição, baseado na simples notícia de que algo será divulgado, pode ser até pior que a censura prévia. No passado, pelo menos, a censura prévia era feita em cima de textos que seriam publicados.

ÉPOCA – Pode-se proibir a divulgação de uma gravação que revela um caso de corrupção?

Sepúlveda – Não. A informação sobre a prática de um crime é lícita, e o princípio da proteção à privacidade não se aplica em tal caso. O que deve valer é a liberdade de informação, desde que não se desrespeite a vida privada de uma pessoa. Mesmo assim, há exceções. O exemplo histórico é o Caso Profumo, em que um ministro do governo inglês tinha uma amante. Essa informação, a princípio, era privada, mas tornou-se de interesse público quando se descobriu que a moça era também amante de um espião soviético. Em casos assim, a intimidade pode ser invadida. Mas não para revelar as preferências sexuais de um ministro.

ÉPOCA – A liberdade de imprensa está assegurada no Brasil?

Sepúlveda – É um direito constitucional. É uma arma poderosíssima e uma exigência da sociedade. Exatamente por isso há de se encontrar limites de convivência com outros direitos. O problema, portanto, é de conciliá-lo com os limites impostos pela Constituição.

ÉPOCA – O Supremo vai acabar se tornando o guardião da liberdade de informação?

Sepúlveda – É previsível que isso ocorra. A divulgação de fatos objetivos, lastreados em informações minimamente idôneas, não deve ser coibida preventivamente. Salvo fatos relacionados à vida íntima e privada, quando não há interesse público. Temo que a tese da tutela preventiva (medida que impede a publicação de determinada informação) possa degenerar para um não-me-toques incompatível com a liberdade de informação. O passo seguinte é muito pior.

ÉPOCA – Um juiz em São Paulo decidiu apreender os outdoors da revista ÉPOCA alegando que se trata de material publicitário. Falando em linhas gerais sobre uma medida desse tipo, o que o senhor diria?

Sepúlveda – Outdoor é publicidade.

ÉPOCA – Mas um outdoor é uma extensão da publicação.

Sepúlveda – Nesse caso é duvidoso que a decisão tenha sido correta. É difícil fundamentar que algo lícito, incluindo sua publicização, não possa ser de conhecimento do público.

ÉPOCA – A restrição da liberdade de informação não pode dar margem à impunidade?

Sepúlveda – A liberdade de informação desempenha papel extremamente importante na investigação de fatos criminosos. Mas é preciso evitar o julgamento pela mídia. Para a independência do Poder Judiciário isso é muito perigoso.

ÉPOCA – A imprensa tem cometido excessos que justifiquem a censura prévia?

Sepúlveda – No Brasil, os meios de comunicação não primam pelo respeito a certas garantias. Não vou citar nomes de programas de televisão, mas eles são notórios. Há invasão de privacidade e exploração de momentos dramáticos das pessoas. Acho revoltante.

ÉPOCA – O senhor está falando de programas de auditório. Como o senhor avalia a imprensa, propriamente dita?

Sepúlveda – O saldo dos últimos anos é altamente positivo, mas é importante não desconhecer os riscos para as próprias liberdades fundamentais.

ÉPOCA – O senhor já julgou algum caso que ferisse a liberdade de imprensa?

Sepúlveda – Julgamos no Supremo a constitucionalidade de um dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente que permite, em casos de publicações vedadas pela lei, que o juiz suspenda a circulação. Decidimos pela inconstitucionalidade, mas por duas razões diferentes. Eu e parte dos ministros consideramos que aquilo era uma pena aplicada sem processo, sem as garantias do processo. Outros juízes entenderam que era, indiretamente, uma violação da liberdade de informação. Ou seja: apesar de uma discordância no meio do caminho, os dois lados concluíram que seria errado aceitar a proibição.

ÉPOCA – Qual sua avaliação do trabalho do Ministério Público Federal?

Sepúlveda – A resposta é parecida com a anterior. Há abusos e passionalismos, mas o saldo também é imensamente positivo. Sou suspeito porque participei na formulação desta nova estrutura do Ministério Público no Brasil, uma entidade sem similar no mundo. Está na linha de frente do combate à corrupção e na proteção dos interesses desprotegidos, como o do consumidor, do meio ambiente e do patrimônio histórico. Antes, temia-se o Ministério Público por seu oficialismo e ligação com o Estado. Agora, ele se tornou o veículo da sociedade. É comum entidades e associações de todo o país preferirem levar seus problemas ao Ministério Público exatamente por causa de sua credibilidade.

ÉPOCA – E a Justiça?

Sepúlveda – Ela vive uma crise de funcionalidade sem paralelo. Mas o cidadão descobriu no Judiciário um espaço de afirmação de direito. Ali, luta-se não apenas em disputas individuais, mas até por conquistas sociais. Por isso mesmo, o Judiciário tem dois problemas – dar respostas à demanda tradicional e superar a demanda que se multiplica devido à consolidação da democracia. Estamos no Supremo com uma média de 100 mil processos por ano. É uma prova de que o atual modelo está falido e precisamos resolver problemas estruturais.

ÉPOCA – A opinião pública tem uma percepção de impunidade no país. Enquanto o ladrão de galinha vai para a cadeia, há sempre um juiz de plantão para soltar os poderosos. O que o senhor acha disso?

Sepúlveda – Apesar de essa visão não ser inteiramente verdadeira, é natural que a sociedade a tenha. Diria que a estrutura social e a pobreza do aparelho repressivo para enfrentar os crimes sofisticados são muito mais responsáveis por isso que o Judiciário. O aparelho de investigação foi criado e estruturado para lidar com a criminalidade de rua. O batedor de carteira comete o crime e depois pensa para onde vai fugir. Já o criminoso financeiro está cercado por assessores e faz um cálculo. Se o risco é grande, ele adia ou altera a operação. A Justiça é de uma pobreza franciscana para enfrentar esse tipo de crime.

ÉPOCA – Muita gente não gosta de falar no assunto, mas o senhor acha que o controle externo do Judiciário é fundamental?

Sepúlveda – Esse assunto não é tabu para mim. O importante é que haja um mecanismo de planejamento e de controle global do Judiciário brasileiro. Essa visão ateística da autonomia do Judiciário, hoje dividido em quase 100 tribunais só na esfera federal, como ilhas, também fracassou. Que neste organismo haja pessoas alheias ao Judiciário é um problema secundário. Mas é óbvio que, quando se pensa em dar uma formação claramente política a este organismo, é de temer pelas instituições. Basta uma decisão que desagrade a este ou aquele setor para o tema do controle externo voltar imediatamente à pauta.

ÉPOCA – O senhor já se sentiu injustiçado pela imprensa de alguma forma?

Sepúlveda – Nestes meus 17 anos de vida pública, houve notícias não verdadeiras, distorções e má interpretação.

ÉPOCA – E o que o senhor fez?

Sepúlveda – As coisas se resolveram pelo direito de resposta, ainda que exercido informalmente."