Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Walter Fontoura

COBRAS CRIADAS / RESENHA

"Cobras criadas", copyright no. (www.no.com.br), 16/11/01

"?Cobras Criadas – David Nasser e O Cruzeiro?, de Luiz Maklouf Carvalho, é mais que uma biografia de David Nasser, o mais famoso repórter da primeira grande revista de circulação nacional do Brasil. É também, em parte, a história de ?O Cruzeiro? – e de dezenas de personagens apresentados pelo autor, ao longo de suas quase 600 páginas e muitas fotos. De David Nasser e ?de suas circunstâncias?.

É um bom livro, embora talvez não precisasse ser tão grande. Leitura indispensável para jornalistas e estudantes de jornalismo, ?Cobras Criadas? mostra as aventuras de David Nasser, sozinho ou com Jean Manzon, seu principal parceiro, no Brasil dos anos 40, quando teve seu fastígio, até meados dos 60, quando começou a declinar.

Chateaubriand, Getúlio, Juscelino, Jânio, Costa e Silva, Andreazza, Roberto Marinho, Samuel Wainer, João Calmon, Carlos Lacerda, Hélio Fernandes, Leão Gondim, Amador Aguiar, Delfim Netto, Edmundo Monteiro e outros personagens, maiores e menores, circulam com mais e menos destaque ao longo dos caminhos de David Nasser, ajudando-o e sendo ajudados por ele, do nascimento humilde em Jaú, SP, à carreira vitoriosa que culminaria nas páginas de ?O Cruzeiro?, assinando reportagens espetaculares que faziam vender a revista em todo o país.

?O Cruzeiro? foi, naqueles tempos, mais ou menos o que a Rede Globo é hoje, como se costuma dizer. Só que, ao contrário da Globo, o ?O Cruzeiro? não tinha concorrência. ?O amigo da onça?, de Péricles, ?O pif-paf?, de Millor Fernandes, e as reportagens de David Nasser e Jean Manzon eram lidas e comentadas em todo o país. Nos anos 50, o ?O Cruzeiro? chegava e era disputado nas menores cidades.

O brasileiro que hoje vive por exemplo em Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia, assistindo à Globo, ao SBT e à Record, à BBC e à CNN, e vendo em tempo real o atentado às torres do World Trade Center não pode fazer idéia do que significava abrir um exemplar de ?O Cruzeiro? naqueles dias.

As notícias não eram instantâneas nem de várias fontes, como hoje. Era através de ?O Cruzeiro? que boa parte dos leitores ficava sabendo do que acontecia no Brasil e no mundo. E o que saía no ?O Cruzeiro?, por mais inacreditável que fosse, era lei. A revista mexia com a imaginação de todo o país.

Hoje mais lembrado como compositor popular, David Nasser tinha um excelente texto. Fazia o que queria com as palavras, tinha especial talento para bater, para ferir. Os fatos não tinham importância: não se preocupava com eles. Suas reportagens e denúncias pretendiam – ainda que à revelia dos fatos – dizer o que ele achava que os leitores gostariam que fosse dito. Para alcançar esse objetivo, valia qualquer recurso.

Em meados da década de 30, o jornalismo era no Brasil o que os saudosistas chamam de ?jornalismo romântico?. David Nasser foi uma flor da imprensa desse tempo. O jornalismo romântico, nem sempre muito atento à verdade, começava por não pagar salários aos jornalistas; ou, digamos, a pagar pouco e atrasar muito. Em muitos casos, os jornais eram um trampolim para carreiras na política ou na administração pública. Não é por outro motivo que quase todo homem público de relêvo no Brasil passou por redações de jornal.

?Cobras Criadas?, escrito entre julho de 1999 e junho de 2001, é o resultado de minuciosa pesquisa feita por Luiz Maklouf Carvalho. Foram 103 entrevistas e incontáveis consultas ao extraordinário arquivo pessoal de David Nasser, de ?O Cruzeiro? e de ?Manchete?, dos ?Diário da Noite? e do ?O Globo?, além da Biblioteca Nacional, do Arquivo Público Rio de Janeiro, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e de imensa bibliografia.

David Nasser nasceu em Jaú, em 1917, e morreu no Rio, aos 63 anos, em 1980. ?Mesmo ocupada com o assassinato do beatle John Lennon, dois dias antes – escreve Luiz Maklouf Carvalho -, a imprensa deu grande espaço para a morte do jornalista. Foi primeira página dos quatro principais jornais – Folha de S. Paulo, O Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil e O Globo – e ganhou duas colunas na Veja, a principal revista semanal do país?.

?Nasser veio de baixo. Menino pobre, vendedor de pentes e giletes na Central do Brasil, passou a vida administrando as conseqüências de uma meningite que lhe atormentara a infância, deixando seqüelas no andar, no movimento das mãos e na visão?.

?Começou como repórter inexperiente de plantões noturnos, o chamado ?foca?, e transformou-se na grande estrela de ?O Cruzeiro? – por muitos anos o carro-chefe dos ?Diários Associados?, o império criado pelo jornalista e empresário Assis Chateaubriand. Foi, também, letrista de três centenas de músicas – entre elas, Nega do Cabelo Duro, Canta,Brasil e Camisola do Dia- , publicou dezessete livros, tornou-se empresário e fazendeiro bem sucedido?.

?Era amigo de presidentes da República, ministros, militares, diplomatas, banqueiros e empresários de peso. Tinha orgulho de ser o presidente de honra da Scuderie Le Coq, o nome de fantasia do esquadrão da morte. Para surpresa de muitos e indignação de alguns, foi a bandeira da Scuderie, com suas tíbias cruzadas, que guarneceu o caixão selado e muito visitado no prédio da Manchete?.

O livro explora a ligação de David com o empreiteiro Marco Paulo Rabelo, entre outros. O dono da Construtora Rabelo, uma das empresas que participaram da construção da ponte Rio-Niteroi, beneficiou-se da amizade de David com o ministro dos Transportes, Mário Andreazza, e teve muitas obras.

Andreazza, um dos principais articuladores da candidatura do general Costa e Silva à presidência da República, contra o desejo do grupo do presidente Castello Branco, foi grande amigo e precioso aliado do jornalista. Mário Andreazza era coronel do Exército, tinha gosto pela política e pela articulação política. Realizador, muito simpático, havia nele algo do desenvolvimentismo de Juscelino. Chegou a sonhar com a presidência da República. Morreu ainda relativamente jovem, de câncer, em São Paulo. E pobre.

?Cobras criadas?, aliás, transcreve trecho de artigo ( ?Delfim e Simonsen, um sorriso, uma lágrima?) publicado na Manchete de 24.04.76, em que David revela ter sido ele o responsável pela aproximação de Delfim Netto com o general Costa e Silva. Apesar de publicado em 76, o fato sôa como novidade, mesmo para os amigos mais chegados do ministro Delfim Netto.

Nasser conta que Laudo Natel, então governador de São Paulo em substituição a Adhemar de Barros, sugeriu-lhe que conhecesse o professor Antônio Delfim Netto, secretário da Fazenda do Estado. ?O jornalista – escreve Luiz Maklouf Carvalho – olhou uma figurinha simpática, extrovertida, roliça, e achou que parecia um ?taberneiro?.

?Marcaram um jantar no Othon Palace Hotel. Delfim chegou na hora certa, impressionou o jornalista e vendeu seu peixe: queria levar suas idéias ao presidente nomeado Costa e Silva, em seminário que sabia marcado para os próximos dias. Trecho do citado artigo:

?Esse gordinho, ruminei, é ambicioso, quer voar alto.

Com a maior franqueza, esclareci que não exercia qualquer função na assessoria de imprensa do futuro presidente, nem o desejaria. Talvez o caminho fosse outro. Mas ele estava bem informado sobre o relacionamento pessoal que mantinham o bom marechal e o velho jornalista e sugeriu que lhe enviasse a idéia da conferência, acompanhada naturalmente do currículo. Acedi. Nesse momento, vi que estava em frente a um homem obstinado e predestinado. Trazia pronto o currículo e até um retratinho preso a um canto da primeira página.

Costa e Silva estava em Los Angeles, numa piscina, ao lado de outros brasileiros, quando Andreazza lhe entregou o dossiê Delfim que eu lhe enviara através de Arlindo Silva, hoje do grupo Silvio Santos, o que equivale a dizer um homem que fez 13 pontos na Loteca. O velho marechal leu a ficha técnica, espiou o retrato do Delfim e murmurou entre sardônico e assombrado: ?Mas, o Feolinha é tudo isso? ?

?Feolinha? é alusão a Vicente Feola, técnico da seleção, o ?Felipão? da época. Já eleito pelo Congresso, o general Costa e Silva montara em Copacabana, no apartamento cedido por um amigo, um grupo de estudos de problemas brasileiros. Delfim Netto, apresentado por David Nasser, foi um dos conferencistas. Acabou ministro da Fazenda.

No círculo de amigos de Delfim, poucos saberão sequer que ele tinha qualquer espécie de relacionamento com David Nasser. O jornalista Sérgio Figueiredo, dos mais chegados ao ex-ministro, por exemplo, duvida: ?Nunca ouvi falar nisso?.

Mas o próprio Delfim confirma, em ?Cobras Criadas?: ?É fato que David Nasser indicou meu nome ao presidente eleito, general Costa e Silva, para participar de uma série de seminários organizada no Rio de Janeiro, na qual se discutia a atualidade econômica do país. Eu era secretário da Fazenda do governo Laudo Natel e fui convidado para fazer uma exposição sobre o papel da agricultura no desenvolvimento brasileiro. Sei que o presidente também pediu a opinião do presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro, Rui Gomes de Almeida?.

Nas últimas duzentas e tantas páginas, ?Cobras Criadas? se derrama na descrição de matérias pagas sem caracterização, ?jogadas? e lances de advocacia administrativa que ajudaram a fazer a fortuna de Nasser e de alguns de seus contemporâneos de ?O Cruzeiro?. O grande jornalista não aparece em boa luz, utilizando-se de suas colunas para ajustar contas com desafetos, ou para defender seus próprios interesses, menores ou maiores. Até agora, ninguém reclamou – ao menos, com o autor.

Há um episódio melancólico, quando alguém se lembra de doar a máquina de escrever de Nasser ao jornal ?O Globo?, anos depois de sua morte, já em maio de 97. Walter Poyares, assessor de Roberto Marinho, agradece: ?Lamento informar-lhe que nós não dispomos de um museu ou local similar que permita abrigar peças como essa…?, escreveu ele ao doador, Ibrahim Abbudi Neto, sócio de Nasser numa serraria.

A leitura de ?Cobras Criadas? dá uma certa tristeza. A decadência dos ?Associados?, que talvez se faça sentir com mais força a partir do derrame cerebral que atingiu Chateaubriand em 1960, corresponde à decadência, e também física, de David Nasser. Que, apesar de todos os seus triunfos e riquezas, nunca foi respeitado como uma grande figura, fora da família, que protegia, e do círculo de amigos, que incluía integrantes da Scuderie Le Coq. Pode ter sido, e foi, temido. Mas só."

 

"Água e vinho", copyright Folha de S. Paulo, 18/11/01

"Acabam de ser lançados dois bons livros jornalísticos: ?Cobras Criadas? (Editora Senac), de Luiz Maklouf Carvalho, sobre David Nasser, e ?Memórias de Alegria? (Mauad Editora), de Joel Silveira. Na verdade, não são só biográficos, mas reconstituem um período rico da história recente do país e de sua imprensa, principalmente os anos 40 e 50. Foram décadas de grandes transformações sociais em que Nasser, na revista ?O Cruzeiro?, dos Diários Associados, e Silveira, em vários veículos, se destacaram.

Nasser, nascido em 1917, chegou a ser o jornalista mais conhecido e atrevido daquela época. Morreu em 1980, aos 63 anos.

Silveira foi considerado pelo próprio Nasser ?o melhor repórter? da sua geração. Ele é de 1918 e está aí, firme e forte, com a memória intacta e a língua solta. Recentemente, desafiou Zélia Gattai na disputa pela vaga de Jorge Amado na ABL.

Os dois tinham poucas coisas em comum, como personalidades muito fortes, a obsessão pelo inusitado e bons textos, marcas de qualquer grande repórter. No mais, deixam legados bem distintos.

O livro de Maklouf demole a obra construída por Nasser. A sensação que se tem, ao longo da leitura, é de que um abismo separa o jornalismo ficcional de Nasser dos padrões noticiosos atuais. No entanto o seu estilo sensacionalista e inventivo fez discípulos e ainda perdura, sem a mesma legitimidade.

Joel Silveira conta os bastidores de algumas de suas principais reportagens -como o cerco ao palácio do governo de Goiás, em 64, e a deposição de Mauro Borges. É um jornalismo quase engajado, com as dimensões trágica e cômica da história.

A reprodução, nos dois livros, de reportagens da época, quase sempre narradas na primeira pessoa, permite perceber como o jornalismo evoluiu para um texto mais preciso, conciso e seco, normatizado pelos manuais de redação. E comprova como perdeu em sabor e personalidade."