PRESIDENCIÁVEIS
NO JN
Luiz Weis (*)
Certa vez, o diretor de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo mandou um telegrama de desculpas ao então governador de Pernambuco, Miguel Arraes, porque o repórter que o entrevistara em um programa da emissora tinha lhe feito uma pergunta embaraçosa sobre os seus negócios na Argélia, onde viveu no exílio que lhe impusera a ditadura militar. Diante do telegrama, o entrevistador, naturalmente, se demitiu.
O pecado que ele cometera foi contrariar a tradição de mansuetude e complacência das entrevistas com personagens da vida pública na televisão brasileira. Com as exceções conhecidas ? entre elas a do Roda Viva, daquela mesma TV Cultura ?, a regra entranhada na mídia eletrônica, muito especialmente nos canais abertos, é a de tratar a autoridade ou o político a quem se entrevista ? e se entrevista muito menos do que o necessário ? com uma mistura de temor reverencial e despreparo.
A combinação dessas duas formas de negação do bom jornalismo já permitiu a uma infinidade desses entrevistados enganar e tornar a enganar a sociedade que os sustenta, por não terem sido os seus ditos e feitos submetidos a um escrutínio corajoso e bem informado, aos olhos da multidão.
Quantas vezes, em programas de entrevistas, um telespectador terá visto e ouvido um jornalista levar um político às cordas com um "o senhor não respondeu à minha pergunta" ou "a sua resposta deixou de lado o fato essencial de que…"?
Ou, por outra, quantas vezes um entrevistador deixou de interromper o entrevistado, quando até as paredes do estúdio percebiam que ou ele mentia ou se alongava nas respostas, "enchendo linguiça", apenas para ganhar tempo, para evitar outras perguntas desconfortáveis, aproveitando-se do fato de que o programa tem hora certa para acabar?
Por inibição diante do poder dos figurões em cena ou por não terem feito a lição de casa para contestar, com conhecimento de causa, as suas tentativas de vender o peixe que trouxeram, sem que se pudesse lhes examinar as guelras, mais entrevistadores do que seria aceitável para uma opinião pública politicamente adulta entregam de mão beijada ao entrevistado o controle da situação.
Luvas de boxe
Políticos como Paulo Maluf e Leonel Brizola, por exemplo, sempre foram mestres nesse jogo: um, por responder o que lhe convém, seja qual tenha sido a pergunta feita; outro, por falar durante uma eternidade, a cada resposta, limitando o risco de ser confrontado com uma pergunta contundente.
A exceção talvez mais célebre a esse padrão ? a
pergunta de Boris Casoy ao então candidato a prefeito de
São Paulo, Fernando Henrique, em 1985, se ele acreditava
em Deus ? é um exemplo bom e ruim. Bom, porque Boris foi
no fígado do candidato, tido, se não como marxista,
como intelectual de esquerda. Ruim, porque a pergunta, como incontáveis
vezes já se observou, não tinha a mais remota relevância
para se avaliar as qualificações de alguém
que queria governar a cidade.
Mas, não fosse a tradição caprina das entrevistas com políticos na TV brasileira ? se os entrevistadores que aqui balem tivessem o hábito de morder os entrevistados, e mordê-los onde sabem que lhes doerá mais, como fazem corriqueiramente as estrelas do telejornalismo americano Cristiane Amampour (CNN), Dan Rather (CBS) e Jim Lehrer (PBS), e o extraordinário Tim Sebastian, do Hard Talk da BBC, que fala manso e carrega um grande porrete, como diria Theodor Roosevelt ?, não fosse essa tradição, não teria tido o impacto que teve, deixando tanta gente boquiaberta, o desempenho do apresentador do Jornal Nacional da Rede Globo, William Bonner, na série de entrevistas da semana passada (8, 9, 10 e 11/7) com os presidenciáveis Ciro Gomes, Anthony Garotinho, José Serra e Luiz Inácio Lula da Silva.
"Bonner para presidente", foi o título que o mais celebrado cronista brasileiro, Luis Fernando Verissimo, deu à sua coluna da quarta-feira (10/6) no Estado de S.Paulo e no Globo. "O Bonner foi tão expansivo que o Ciro Gomes teria razão em reclamar tempo igual", escreveu ele.
Aparentemente, nem o cronista nem ninguém esperavam:
1) que a minissérie presidencial da Globo fosse "para valer" e não pouco mais do que uma bem-comportada troca de platitudes entre entrevistadores e candidatos, ao velho estilo que aqui se descreveu, em que os primeiros se limitariam a fazer as perguntas óbvias sobre os programas de governo dos entrevistados e esses responderiam com as generalidades de praxe sobre a retomada do desenvolvimento, combate ao desemprego, à violência e às desigualdades sociais;
2) que o jovem, telegênico e competente leitor de teleprompter William Bonner fosse também "expansivo", isto é, capaz de fazer perguntas oportunas e agressivas ? pelo que continham, não pela maneira de perguntar ?, e, principalmente, tivesse a firmeza profissional de interromper os entrevistados e elaborar contestações às respostas que não o satisfaziam, com inteligência e fundamentação.
Calote da dívida (Ciro), fitas sonegadas (Garotinho), dossiês (Serra) e inexperiência administrativa (Lula) fizeram parte de uma pauta inquisidora que, no que lhes tocasse, não deve ter agradado a nenhum dos candidatos, mas ajudou a maioria absoluta do eleitorado (cuja fonte primária de informação é a TV e, nela, a Rede Globo) a descobrir o que têm a dizer e como se comportam os presidenciáveis longe do ambiente sob medida preparado pelos marqueteiros nos horários de propaganda partidária, que terminaram de ir ao ar em junho ? e no horário eleitoral, a partir de agosto.
Já se comentou que essa primeira rodada global de entrevistas funcionou como a verdadeira abertura da campanha sucessória. Resta esperar que também sirva de incentivo para que a maioria dos entrevistadores da televisão brasileira aprenda a trocar as luvas de pelica pelas de boxe. Porque, para o bem da democracia, não pode "ter mole" no jornalismo político: quem quer o poder precisa dar a cara para bater.
E que nunca mais um entrevistador tenha de pedir demissão porque o chefe tomou as dores do entrevistado por causa de uma pergunta que não era uma submissa "levantaçãatilde;o de bola".
(*) Jornalista