PRESENÇA DE ANITA
"De lolitas e anitas", copyright No. (www.no.com.br), 27/08/01
"Não conheço um ?tio? – vocês me entendem – que não esteja vendo a minissérie ?Presença de Anita?. Será por quê? Fiz a pergunta numa roda de coroas e as respostas foram muito curiosas: ?É por causa da história?, disse um, a sério. ?É pelos olhos verdes da Mel?, respondeu outro, contendo o riso. ?É pela interpretação?, afirmou o mais cínico. Eu disse que era por causa da Maysa cantando ?Ne me quitte pas?, do Jacques Brel, o que é pelo menos uma meia verdade: adoro a cantora e o compositor.
Como as esposas estavam presentes, ninguém respondeu que era pelas cenas tórridas entre o homem de cabelos grisalhos e a quase menina que só anda de calcinha e ainda por cima tem, como fetiche, uma tatuagem naquela parte posterior do corpo em que a planície começa a se elevar até se transformar na região ondulada que, como se sabe, é a preferência nacional.
Manoel Carlos é um craque. Ele pega na veia. Poucos escritores têm, como ele, essa capacidade de captar e descrever tendências e tipos (basta lembrar a garota de programa de ?Laços de família?) contemporâneos: o comportamento, as fantasias, os sonhos eróticos. Ele é hoje, na teledramaturgia, o melhor espelho de uma certa classe média brasileira.
O livro de Mário Donato, no qual é inspirada a minissérie, foi uma daquelas leituras pecaminosas e solitárias, como um certo vício, a que minha geração na adolescência se entregava escondida. O mundo tem que se curvar diante de mais esse nosso feito: Anita nasceu sete anos antes de Lolita, a personagem de Vladimir Nabokov que se pensa ser a primeira encarnação literária do fenômeno.
Mas em termos de ousadia, o romance de Donato (e mesmo o de Nabokov) está para essa adaptação televisiva como um maiô inteiro está para um biquini fio-dental. Como um baby-doll para a nudez total. Como os anos 40 para os 90. Acho que nunca se foi tão longe em matéria de sexo na televisão brasileira. Na revista Época dessa semana, há uma matéria de capa sobre ?o efeito Anita?, em que os repórteres Paula Mageste e Victor Javoski mostram como o sucesso da minissérie trouxe de volta à cena ?a atração irresistível e quase incestuosa, que liga meninas-mulheres e homens maduros?.
É isso. Em tempos de permissividade, mais até, de desrepressão e transgressão que quase chegam às vias de licenciosidade, o incesto – ou a simples sugestão dele – talvez seja o único tabu ainda em vigência, acompanhado da pedofilia. As duas perversões, aliás, estão intimamente ligadas. Os outros tabus cairam por terra: a virgindade, o adultério, o homossexualismo e todas, ou quase todas, as formas de sexo: o oral, o anal e o etc. Dizem que o que antigamente se chamava de ?sexo normal? está em vias de extinção.
?Presença de Anita? veio redimir aquela possibilidade de relação que a garota Sukita desmoralizou cobrindo-a de ridículo. Até outro dia, qualquer olhar, qualquer fantasia de algum velhinho assanhado era sempre ameaçada pela lembrança do pedido: ?tio, aperta o 20?. A generosa Anita jamais mandará a gente apertar o botão do elevador.
Uma das especialidades da indústria da moda e da publicidade hoje é transformar essas crianças de 13 anos em objetos sexuais – pior, em sujeitos de sedução – estimulando seus precoces poderes de excitação, erotizando gestos, posturas, olhares, maneira de andar e de rebolar, que vão ser logo devorados pelo insaciável mercado, sempre pedindo mais.
É assim mesmo? Será que a exceção vai virar regra? Como não quero passar por retrógrado criticando o mercado, calo a boca. Mas me lembro de um amigo que, aos trinta e tantos anos, se especializou em namorar adolescentes. Um dia exagerou e eu manifestei meu espanto indignado: ?essa garota não deve ter nem 14 anos!?, eu protestei. E ele: ?mas é conservada, né!?. O sem-vergonha fingia acreditar que eu estava estranhando não a pouca, mas a muita idade da namorada.
Temo que daqui a pouco, quando essas meninas de 13 anos estiverem com 20, a gente vá achar que nem conservadas elas estão, se é que isso já não está acontecendo hoje."
"Boa de Ibope e de briga", copyright Jornal do Brasil, 30/08/01"Anita (Mel Lisboa) está nua, encostada na guarda da cama, quando Nando (José Mayer), já sem camisa, a abraça por trás e beija seu pescoço. A cena acaba. A insinuação foi feita. Cada um conclui – ou imagina – o que que quiser sobre o que não está no script. Cada um dos 2,4 milhões de telespectadores que, só em São Paulo, toda noite, às 23h, liga a TV para assistir à série Presença de Anita, da Globo. A trama sobre a atormentada relação entre um quarentão casado e uma pós-adolescente liberal é conduzida por cenas mais que sensuais, na opinião de muitos, quase eróticas: Anita de calcinha de algodão, Anita de toalha, Anita nua na cama, Anita nua de costas, Anita nua quase de frente. O ibope responde. Com a presença do corpo perfeito de Mel Lisboa, as duas primeiras semanas da série registraram média de 29 pontos.
O número é quase um feito. Ainda mais quando as duas últimas investidas da Globo em dramaturgia nesse horário não foram muito felizes. Os Maias registrou minguados 21 de média e Aquarela brasileira, com números um pouco melhores, não passou dos 23. Nesta semana, Presença de Anita subiu ainda mais e chegou a registrar 33 pontos.
Assunto – Mais que bons índices de audiência, a série é um daqueles raros exemplos de dramaturgia que extrapola. Virou assunto. Comentário geral. Difícil encontrar quem não tenha uma opinião. A favor ou contra. O motivo principal? Sexo. A série mostra cenas de sexo de uma maneira mais explícita do que o habitual na TV aberta. Ainda mais na Globo.
?Essa minissérie vai na trilha dos limites, que é também a trilha das neuroses e da perversão. Esconde, mas mostra o que está escondendo. Não é pornográfica, é indecente. Na era da TV sexualmente perversa e a série faz sucesso pela pequena dose de perversão pedófila que encena. Conseguiu um jeito disfarçado de falar de pedofilia. Isso é novo porque até então era proibido. Daqui para frente pode vir até sexo com cachorro?, analisa o coordenador do Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Eco-UFRJ), Muniz Sodré.
Apesar da visão dantesca, a teoria de Muniz, na prática, não despeja sobre a TV, veículo, o ônus da causa. ?Não vejo o público como vítima da TV. Depois de um tempo, a TV é igual a seu público. Há um pacto secreto entre a visão do público e a TV?, ressalta.
Hedonismo – Ginecologista, casado, pai, avô, diácono da Igreja Católica, Vinícius Nelson Garcia de Souza, 66 anos, acredita que o que passa na TV influencia o que passa pela cabeça do telespectador. Principalmente a dos mais jovens. Aqueles que, segundo ele, ainda estão acordados quando Presença de Anita é exibida. Por isso, ele é contra a série. Radicalmente contra. ?É hedonismo, só sexo, sexo, sexo. Acho horrível. A TV Globo está cada vez mais aumentando o nível de pornografia. Não sou moralista, mas é necessário manter um padrão de dignidade. A maioria da população precisa de orientação, de valores e esta série existe dentro padrão do sexo puro. E a compreensão? E o companheirismo??, critica.
Autor da trama, Manoel Carlos rebate o reducionismo do diácono. ?A minissérie só faz sucesso porque é boa. Senão, bastava adaptar o Kama Sutra. Também não acredito que os adolescentes vão copiar esse ou aquele comportamento. Se fosse assim, íamos adaptar a vida dos santos?, ressalta. Para o autor, Presença de Anita tem o tom certo para seu horário. ?O horário me permite escrever essas cenas. Não estamos apelando. É uma história para adultos. Se as crianças assistem é porque os pais permitem.?
Fã de Presença de Anita, a cantora Rita Lee engrossa o coro de quem defende. ?Em primeiro lugar, lembramos da existência do controle remoto, é só apertar um botãozinho para mudar de canal e assistir aos bispos da igreja Universal exorcizando demônios. Em segundo lugar, o horário que está sendo exibida a série é para maiores de 16 anos, portanto as cenas calientes estão dentro dos conformes.?
Valores – Católica praticante, a socialite Clara Magalhães também é telespectadora fiel. Mas prefere ver a série longe dos dois filhos adolescentes. ?Vemos TV juntos, mas esse programa me incomoda. Como é mais tarde, não assisto com eles. Presença de Anita acaba envolvendo a gente, mas é muito pesada. Sinto pena dos personagens e de seus valores tão pequenos. Mais forte do que é, não sei o que pode ser?, afirma Clara.
Aos 85 anos e muitas namoradas bem mais jovens no currículo, o ex-playboy Jorginho Guinle acha que Presença de Anita já é o que Clara não ousa saber. ?Mais que isso, só mostrando os dois transando mesmo. E aí seria um filme pornô?, opina. Para Jorginho, o sucesso de Presença de Anita está na Anita, quer dizer na sensualidade de Mel Lisboa.
?Desde Sônia Braga não vejo alguém tão sensual. A maneira como ela olha, fala. É completamente desinibida. Isso é inesperado e causa frisson?, elogia. Como Jorginho, difícil encontrar um marmanjo imune aos encantos da jovem de 19 anos. Cláudia Lisboa, mãe de Mel, digere muito bem as coisas. ?Separo a atriz da minha filha?, garante.
Tabus – Para Cláudia, o que fascina em Presença de Anita são os tabus até então mascarados para a TV. ?Ela choca porque exibe coisas comuns no dia-a-dia, mas que a TV não mostra. Desde o linguajar, até andar de calcinha em casa. A minissérie tem coisas fortes, mas são situações que nos cercam. Não é apelativa. A estrutura da sociedade é que é hipócrita. Vejo muito programa de criança pior, com heróis matando todo mundo?, diz Cláudia.
Psicanalista especializada em infância e adolescência, Ana Cristina Olmos não vê possíveis danos para adolescentes que assistem à Presença de Anita, principalmente porque, segundo ela, os adolescentes não se sentem identificados. ?Essa personagem da menina aparece para os jovens como alguém que não os representa. Além disso, ela não é passada como uma heroína. Acho que a série toca mais o adulto que procura no personagem do José Mayer reviver a adolescência que está faltando.?
Adolescência com todos os tabus e fantasias possíveis. ?O proibido é sempre mais estimulante, aumenta o desejo. A sexualidade sobrevive por causa da fantasia?, ressalta o psicólogo Jorge Maurício, 44 anos, aluno do mestrado em sexologia da Universidade Gama Filho.
Com tantas teorias e com Presença de Anita terminando amanhã, mesmo quem é indiferente toma partido ao falar dessa indiferença. ?O que tenho a dizer sobre essa minissérie é que estou com muita saudade da Grande família e dos Normais?, afirma Ângela Ro Ro. O assunto deve render, pelo menos, até à próxima minissérie. (Colaborou Angélica Brum)"
"Anita ajuda TV a conquistar editoras", copyright Folha de São Paulo, 29/08/01
"A Objetiva lança esta semana o roteiro de ?Presença de Anita?, escrito por Manoel Carlos, e já negocia a transformação do script de outras minisséries em livro.
A idéia de colocar nas livrarias a íntegra dos diálogos de Anita, Nando e cia., que têm rendido à TV Globo audiência razoável e repercussão excepcional, é encarada pela editora e por suas concorrentes como um teste importante para o mercado editorial.
Se ?Presença de Anita? tiver nas prateleiras o mesmo sucesso que está conseguindo na televisão, a idéia da Objetiva deve virar uma tendência editorial. Mas, mesmo antes de conhecer o ?ibope? do livro, outras editoras já começam a discutir a possível inclusão de roteiros de TV em seus catálogos.
A Globo é uma delas. E o diretor editorial, Wagner Carelli, começa a explicar seus planos respondendo à pergunta óbvia. Por que foi a Objetiva e não a Globo que transformou em livro o roteiro de duas minisséries globais (antes de ?Presença de Anita?, já havia lançado ?A Invenção do Brasil?, de Guel Arraes)? ?A Globo compete em iguais condições que outras editoras no interesse de publicar obras de autores da emissora. Não temos nenhum privilégio?, diz.
Ele afirma que a editora estuda o lançamento de uma coleção com roteiros de novelas e minisséries. ?Há alguns anos, novelas da TV Globo foram transformadas em livros, com roteiros adaptados para romance. Era um lançamento oportunista, que queria aproveitar o sucesso da novela. Mas, na época, a audiência não trazia um público muito leitor, e a experiência não foi comercialmente interessante?, diz Carelli.
Para ele, hoje o público está diferente e não se sabe ainda exatamente o que quer consumir. Assim, encara a idéia da Objetiva como ?corajosa e interessante?.
?Estamos estudando a oferta de alguns autores da Globo para transformar suas histórias em livro.? O formato ainda não foi definido e deve ser algo entre roteiro e romance, já que o script de uma novela é muito longo para ser publicado na íntegra.
Paulo Rocco, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livro, vê com bons olhos a idéia de investir em scripts. Sua editora, a Rocco, tem a coleção Artemídia, com roteiros de filmes como ?Pulp Fiction? e ?Trainspotting?.
?Temos bom retorno com essa coleção. O cinema tem material mais rico para ser publicado. Na TV, não existe muito material e, por isso, a prática [de publicar roteiros? não é comum nem em outros países. Mas acredito que possa funcionar comercialmente?, diz Rocco. Segundo ele, há roteiros da coleção que chegam a vender 4.000 exemplares, ?o que é bastante para um público mais especializado?.
Público-alvo
Esta, aliás, é uma questão importante. Quem se interessaria em comprar um livro com texto em forma de roteiro, com todos os diálogos em discurso direto, marcação de cenas e orientação para a interpretação dos atores?
Rocco acredita que o forte nesse mercado sejam mesmo as pessoas ligadas ao estudo da comunicação, profissionais de TV e teatro. Já Carelli, da Globo, acha que pode existir atualmente um leitor ?autoral?, aquele que quer conhecer mais a fundo a maneira como trabalham os autores da televisão.
A Objetiva, claro, acredita/espera que ?Presença de Anita? não funcione apenas como uma leitura técnica. ?O bom é quando conseguimos ultrapassar o nicho do leitor especializado?, afirma a diretora editorial, Isa Pessôa.
Ela diz que a Objetiva publicou o roteiro da minissérie porque ?Manoel Carlos é um dos grandes nomes da teledramaturgia e precisa ser estudado?. Além disso, a Objetiva reeditou, pouco antes de a minissérie estrear, o romance de Mário Donato, de 1948, que inspirou a história da TV Globo.
?A questão comercial não foi prioritária nessa decisão. Estamos selecionando outras minisséries e a escolha será muito criteriosa. Não é todo roteiro que pode virar um bom livro?, afirma Pessôa."