TIM LOPES, ASSASSINADO
"Um sonho como consolo", copyright no mínimo, 10/06/02
"A morte de Tim Lopes produziu em mim – e acho que nos colegas de geração – uma comoção e um impacto parecidos com os causados pela morte de outro jornalista, em 1975: Vladimir (Vlado) Herzog. Os dois foram barbaramente assassinados: um pela ditadura militar que governava então o país; o outro, pela ditadura do narcotráfico que domina e controla as favelas cariocas.
Tive o privilégio de trabalhar com um e com outro. Vlado, amigo querido, era editor de cultura da Visão em São Paulo e eu, chefe da sucursal da revista no Rio. Quando ia para as reuniões de pauta, dormia em sua casa e ficávamos conversando até a madrugada. Desses papos, saíram várias matérias, inclusive a que fazia o balanço do golpe de 1964 e que ele me incumbiu de escrever.
Vlado era muito rigoroso e exigente como editor. Nunca estava satisfeito: reclamava, cobrava, mandava refazer. ?E assim se passaram dez anos? – um título com o máximo da ironia possível na época – foi um dos trabalhos mais importantes da sua e da minha vida. Nesse número é que saiu publicada a entrevista que Glauber Rocha mandou por carta e que ficou famosa por marcar o início da distensão na cultura. A edição foi lançada em março de 74, durante o governo Geisel, que prometia uma ?distensão lenta, gradual e segura? e tentava acabar com a tortura, mas enquanto isso mantinha a censura à imprensa. No ano seguinte, no dia 25 de outubro, Vlado era torturado e assassinado num quartel do II Exército em São Paulo.
Um parêntese. (No fim da tarde de domingo, fui à inauguração da nova loja da Livraria da Travessa, em Ipanema, e assisti a uma ?canja? histórica: um show informal de João Bosco e Aldir Blanc. Autores de algumas obras-primas do cancioneiro popular, os dois não se apresentavam juntos há mais de 15 anos. Pois é, meninos, eu vi – vi esse reencontro. Vi, ouvi, curti, me emocionei e aplaudi.
Quando eles cantaram ?O Bêbado e a equilibrista?, um genial hino de esperança que sonhava com a volta do ?irmão do Henfil?, o Betinho, veio à minha velha e cansada memória um país que começava a sair das trevas da ditadura e cuja luz a gente começava a ver no fim do túnel – um país que Vlado ajudou a abrir, com o sacrifício de sua vida. A Clarice do verso ?Choram Marias e Clarices no solo do Brasil? é a viúva de Vlado, uma serena e destemida mulher que lutou insistentemente por justiça numa época em que isso representava um tal risco que hoje é difícil imaginar).
Tim foi meu colega de redação no Jornal do Brasil. O que mais chamava a atenção nele não era nem mesmo o desassombro com que enfrentava as mais duras paradas. Ele tinha o gosto da aventura, e costumava vivê-la com naturalidade. O que me impressionava era a capacidade de não perder a ternura e a sensibilidade. Como em geral acontece com os médicos, que por necessidade têm que parecer frios e insensíveis, os repórteres de polícia desenvolvem um sistema de defesa, uma espécie de couraça para proteger suas sensibilidades. De tanto conviver com a tragédia, de tanto ver de perto a morte e os mortos, eles muitas vezes têm que ser (ou fingir) um pouco cínicos – para agüentar o tranco. Tim não. Sua sensibilidade vivia à flor da pele. Ele era terno, doce, carinhoso. Sua compaixão para com os socialmente desvalidos, os deserdados (e ele, ao nascer negro e pobre, foi um deles) era comovente.
Quando Vlado foi assassinado (e nem isso se podia dizer. O governo inventou um ?suicídio? e impôs essa versão absurda ao país), instituições como a ABI e a OAB protestaram, a sociedade civil se indignou e os jornalistas se mobilizaram. Bem ou mal, a imprensa furou a censura e forçou todos os horizontes do possível. Um outro Brasil começou nesse momento, lenta e prudentemente.
Seria pelo menos um consolo se a gente pudesse sonhar que a morte de Tim vai marcar o começo do fim de uma época de horror – o início da travessia da barbárie para a civilização.
Em homenagem a Tim, Vlado e tantos outros profissionais que em defesa da liberdade de expressão foram imolados, escrevi o seguinte texto, que foi lido por Cid Moreira no ?Fantástico? e que eu gostaria de deixar registrado por escrito aqui:
Ser repórter é perigoso – assim como viver.
Testemunha de seu tempo, ele está sempre correndo riscos: de não chegar a tempo, de não ser fiel, de escapar o furo, de perder a fonte, a confiança e às vezes a vida.
Anda sobre um fio de navalha, tentando equilibrar coragem e medo, cautela e arrojo, razão e emoção, coração e mente.
Humilde operário da busca e da revelação, ele não pode cair na tentação da vaidade e da soberba. Sabe que, como os fatos, a glória é efêmera e provisória.
Nada do que é humano lhe é estranho. Sempre encharcado de atualidade, ele circula em meio ao trágico e ao cômico, entre o sublime e o sórdido, o ordinário e o extraordinário.
É o emissário da boa e da má notícia, olhos, ouvidos e voz da sociedade. Quando a barbárie o transforma em vítima para silenciá-lo, é a civilização que deixa de ver, de ouvir e de falar. É a civilização que perde os sentidos. E o sentido."
"Uma guerra pior que a guerra", copyright Jornal do Brasil, 5/06/02
"O Rio de Janeiro é uma cidade em guerra – não declarada. Se não é guerra, que cidade é esta em que o tráfico legisla sobre a vida alheia, julga e pune os que não lhe agradam e administra espaços públicos nos morros, nas favelas e em toda parte? Os jornalistas que pretendem mostrar os desmandos do tráfico vivem uma situação de guerra. Se não é guerra, que cidade é esta em que um jornalista, no exercício de sua profissão, vê-se na contingência de realizar funções que originalmente caberiam à polícia? Sem nenhuma proteção?
Pensando bem, o Rio não vive uma guerra. Vive algo pior que a guerra. Mesmo na guerra, o jornalista trabalha supondo que uma democracia, mesmo que distante, estará atenta ao seu relato. No Rio, as coisas já não são bem assim. A democracia está ameaçada. Daí que o jornalismo também está. Lembremos que o crime é notícia exatamente porque se supõe existir um Estado Democrático que, ao saber do crime, tomará as providências para puni-lo. E o que acontece quando não há democracia forte o suficiente para punir o crime? O que acontece é uma inversão: o desvio deixa de ser o crime – este se converte em regra. Desviantes passam a ser, então, aqueles que ousam desafiar o governo do crime. Sobretudo os jornalistas. Nesse cenário obscuro, o exercício do jornalismo é que está se tornando um crime hediondo aos olhos dos que usurparam o poder na cidade. Todos os jornalistas, porque comprometidos por definição com a ordem democrática, estão ameaçados de morte. Se a democracia se apequena, se os direitos humanos deixam de comparecer ao cotidiano da maioria da população, ora, que sentido terá o jornalismo? O jornalismo acabará. O Rio de Janeiro será enfim uma cidade inteiramente sitiada. E totalmente emudecida."
"Querubim da Mangueira", copyright Jornal do Brasil, 3/06/02
"Muita coincidência para poucos dias. A TV transmite um belíssimo documentário sobre Kerouac, Ginsberg, Borroughs, os pais da Geração Beat que tanta influência exerceram sobre a minha própria geração, quando penso num amigo que tinha a rebeldia deles e sumiu há uma semana, enquanto tentava fazer uma reportagem perigosa demais numa favela perigosa desta cidade cheia de perigos. O filme termina e, minutos depois, da tela do computador explode pela internet da geração byte a notícia que confirmava aquilo que todos sabíamos mas fingíamos duvidar: Tim Lopes está mesmo morto. Não sobreviveu à favela e aos bandidos que subjugam o povo da Vila Cruzeiro. Não sobreviveu a mais uma de tantas pautas perigosas que cumpriu durante uma longa carreira de jornalista. Mas havia outra coincidência.
Há pouco mais de uma semana, encontrei Tim Lopes num restaurante. Há muito não nos víamos. Almoçamos juntos, com uma amiga comum e com um jovem de 19 anos que eu descobri, naquela quinta-feira, que era filho dele e amigo do meu filho. A barba branca e rala de Tim reluzia. A barriga, como a minha, tinha crescido.
Ele confessou, durante a conversa, que estava cansado de reportagens clandestinas sobre grupos criminosos. Tinha vontade de produzir um documentário sobre a vida dos caminhoneiros. Vendera a idéia para o Fantástico e lhe disseram que ?tudo bem, desde que não fique muito pesado?. Contou que estava cumprindo mais uma dessas pautas secretas e perigosas, mas não falou muito a respeito e, por motivos óbvios, também não fiz perguntas. Depois das muitas piadas e bobagens que se costumam dizer nessas situações, nos despedimos prometendo aqueles encontros mais demorados que nunca acontecem. Mas eu deixei o restaurante torcendo para que Tim se livrasse do carma de produtor-/repórter de reportagens perigosas e conseguisse ver aprovada a idéia da ?vida de caminhoneiro?.
Três dias depois, o choque. Tim estava desaparecido e poderia ter sido morto por traficantes da Vila Cruzeiro, onde produzia, com microcâmera, uma reportagem sobre bandidos que promoviam um baile funk durante o qual se consumiam drogas e adolescentes faziam sexo. Impossível não lembrar, imediatamente, daquela figura barriguda, de barba e cabelos grisalhos, cara de bonachão metida num lugar desses. Quem deixaria de notar sua presença no meio de um bando de adolescentes?
Não pretendo discutir o uso de microcâmera. Mais de uma vez, em debates e seminários e mesmo na atuação como profissional de televisão, defendi a sua utilização como instrumento legítimo de denúncia para o telejornalismo. A única ressalva que sempre fiz foi quanto à importância do crime a ser denunciado. Era contra o uso desse recurso apenas para casos em que se buscava a imagem pela imagem, sem a possibilidade de conseqüências importantes, como a prisão de corruptos ou o desmantelamento de organizações criminosas.
Não sei se seria o caso do baile funk que infernizava a vida dos moradores da Vila Cruzeiro. Mas faço uma pergunta apenas _ mesmo sem a intenção de brandi-la como acusação contra ninguém: foi razoável a idéia de mandar um jornalista para um covil de bandidos neste momento pelo qual o Rio está passando, quando traficantes chegam ao cúmulo de atacar a tiros a própria Secretaria de Segurança Pública? Essa discussão vai longe.
Prefiro que fique como lembrança a doce figura de Tim, que eu costumava chamar de ?Querubim da Mangueira? antes mesmo de saber que ele era Arcanjo Lopes. Mais ainda, que dure muito a amizade do filho dele, que vai estudar jornalismo, com o meu, que já cursa essa faculdade. Tomara que eu seja visto pelo meu filho do mesmo jeito que o filho de Tim o olhava, naquele dia, no restaurante: os olhos do menino brilhavam de orgulho pelo pai."