Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As brechas para a subversão na TV

Divulgada esta semana, a entrevista com o ator Pedro Cardoso pelo jornalista Maurício Stycer traz uma oportunidade riquíssima para pensar sobre diversas questões relativas ao atual panorama da televisão. Funcionário da Rede Globo há mais de trinta anos, o ator atuou em diversas atrações da emissora (dentre elas, algumas marcadamente ousadas e experimentais, como TV Pirata e Armação Ilimitada), mas obteve a maior popularidade de seu trabalho ao personificar Agostinho Carrara nos 14 anos da série A Grande Família.

Pedro Cardoso (camisa azul) com o elenco de A Grande Família / foto Wikimedia CC

Pedro Cardoso (camisa azul) com o elenco de A Grande Família / foto Wikimedia CC

Conforme discorre na entrevista, com o encerramento do programa em 2014 esperava-se uma maior receptividade a novos projetos dos atores, o que, de fato, não ocorreu. Um quadro de humor do ator com Graziella Moretto, sua colega de profissão e esposa, foi estreado no Fantástico, mas não obteve continuidade. O quadro “Uãnuêi” tinha um formato que lembra o atual “Tomara Que Caia”, marcado pelo improviso determinado pela interferência da plateia, com toques circenses, ao ser encenado em picadeiro. Na entrevista, Pedro Cardoso sugere que a não-continuidade do quadro, abortado abruptamente (havia dez episódios gravados e apenas quatro foram ao ar), revela conflitos ideológicos entre os que produziram os esquetes e a produção do Fantástico. Para o ator, a interrupção se sustentou no discurso da falta de audiência do quadro, o que, como insinua, seria uma saída fácil.

Ainda que alguns comentários sobre a entrevista a tenham considerado uma “denúncia anti-Globo”, (há os que viram como uma revelação de “espécie de censura” na emissora). Creio que esta é uma leitura rasa sobre algo que vai muito além. Há elementos muito interessantes para pensar em algo que Pedro Cardoso levanta com sua fala, que são os limites entre a produção criativa, a autoria e a voz da empresa, suas linhas ideológicas e editoriais (sejam elas assumidas ou não). Reproduzo um trecho da entrevista que merece reflexão: “Eu acredito que qualquer emissora de televisão perde ao não acreditar que ela não precisa relaxar a sua estrutura administrativa. O artista não é um inimigo da empresa. A liberdade não é contraproducente.” Com muita franqueza, Cardoso critica inclusive os pares que se submetem à lógica da empresa que trabalham – e que seriam estes, os que abrem mão de sua autoria, os que conseguem hoje as vagas. “Não há nada mais subserviente aos interesses econômicos do que o mundo artístico. Nós que esquecemos há muito tempo que temos que ser do contra”, pontua.

O poder é invisível, calado

A lógica do mundo trabalhista é bem complexa desde sempre, e os conflitos entre os que contratam e são contratados é algo pensado e debatido há séculos, como sabemos. Mas sendo a televisão um veículo que trabalha com produções artísticas, por natureza de valor simbólico, esta é uma discussão bem pertinente. Em que medida é possível obter qualidade naquilo que se cria e, ao mesmo tempo, permanecer “adequado” aos interesses da empresa? Será que todas as grandes atrações que já tivemos na história da televisão – e, gostando ou não delas, é inegável que boa parte do que entendemos por cultura brasileira é mediada pela TV – só foram possíveis em virtude da coincidência de visões, entre os que produzem e os que pagam por esta produção?

Coincidentemente, o programa Zorra, que retornou à grade da Globo após mais de um ano de reformulação, causou uma forte repercussão nas redes sociais em virtude da veiculação de um quadro muito inspirado. O “Festival Coxinha” encenou uma paródia dos antigos festivais de música, mas satirizando os costumes conservadores de uma parte da população “coxinha” que defende, como se ignorasse a própria história do país, ideias como a volta dos militares como uma solução ao Brasil. O quadro foi muito elogiado pelos internautas, que ali enxergaram algo semelhante às melhores épocas do Saturday Night Live, e demonstraram espanto que tal quadro tenha ido ao ar pela Globo, emissora entendida como altamente conservadora por muitos. É sempre possível lembrar, também, que a Globo foi uma empresa beneficiada pela ascensão dos militares (aos que se interessam pelo assunto, recomendo a leitura da obra Guerra dos Gibis, do jornalista Gonçalo Junior, que explicita com clareza os trâmites da construção desta emissora).

Como já dito, a relação patrão-empregados sempre foi intrincada – independente da natureza do negócio. Um posicionamento que simplesmente reduza a Globo (ou qualquer outra emissora) a um discurso uníssono erra, de alguma forma, a desconsiderar que as empresas não são “entidades” autônomas e independentes das pessoas que as fazem. Pensando a televisão, podemos lembrar que grandes autores e atores, com forte posicionamento político, encontraram espaços para realizar seu trabalho nas emissoras televisivas, como a carreira construída por Dias Gomes nas novelas da Globo, ou as críticas ao contexto político em obras como Que Rei Sou Eu? e Vale Tudo. Mesmo Tá no Ar e seu predecessor Casseta e Planeta (que gozava de uma menor liberdade editorial) servem como sintoma de que, historicamente, artistas e jornalistas costumam trabalhar nas brechas daquilo que podem dizer e do que efetivamente dizem. Não por acaso, muito do que melhor foi feito em jornalismo no Brasil data da época da ditadura, quando grandes cabeças se reuniram para pensar soluções de como “falar sem falar”.

De todo modo, é uma pena que a emissora esteja hoje investindo em grandes novos talentos, como o de Marcius Melhem, que participa da redação de Zorra e Tá no Ar, mas privando os espectadores do talento de Pedro Cardoso. Sua ausência na grade talvez seja mais significativa do que aquilo que a emissora diz ou faz circular em seus programas. Como o próprio Cardoso diz, em louvável perspicácia, o poder, quando está estabelecido, nunca é agressivo, mas invisível, calado. Não dizer é, às vezes, mais forte que dizer.

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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha