Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Os cavalos democratas e os bovinos tupiniquins

Nos anos 60-70, quando Brasília ainda não havia conquistado sua autonomia política, a única eleição da cidade era a de comodoro do Iate Clube. Cartazes e outdoors com os nomes dos candidatos espalhavam-se ao longo das vias, spots pipocavam no rádio e vts comerciais com as plataformas eleitorais ganhavam os intervalos da novela das 8, enquanto os jornais acompanhavam atentamente a disputa, dando notícias diárias sobre a agenda dos candidatos. As emissoras chegavam a realizar debates entre eles, conscientes de que eleição no Iate era garantia de ibope. A coisa chegava a tal ponto que, nos dia da eleição e da apuração, havia até flashes radiofônicos ao vivo.

A lembrança daqueles tempos retorna diante do noticiário em todos os jornais e emissoras de rádio e tv sobre a corrida pela indicação democrata à presidência dos Estados Unidos. A brava e bem colonizada imprensa tupiniquim, deslumbrada que nem uma tiete diante de Chitãozinho e Xororó com a disputa para saber quem enfrentará o republicano George W. Bush, vem gastando anos-luz de sinais de satélite e açudes cheios de tinta de impressão, tudo para acompanhar passo a passo a corrida em que se engalfinham um certo Kerry, um tal Dean e alguém que atende pelo sobrenome de Edwards. Todos eles lutando pela primazia de concorrer ao direito de mandar detonar um iraque desses aí quando lhes der na telha ou de usar o Salão oval da Casa Branca para testar em estagiárias incautas o diâmetro dos charutos.

O pretexto para a destinação de tanto espaço e tempo nos meios de comunicação às prévias dos democratas norte-americanos é a importância do império para o futuro da humanidade. Até aí, tudo bem. Afinal, das estripulias de Kennedy com a fogosa Marilyn Monroe nos anos 60 ao apimentado affair Bill Clinton x Monica Lewinsky nos 90, o que rola no reino do McDonald’s – inclusive a crise dos mísseis da Baía dos Porcos em 60 e a pontaria dos pilotos da Bin Laden Airlines em 2001 (Uma odisséia no espaço) – tudo é de fundamental relevância para a vida das colônias em torno. Justificam-se, portanto, os hectolitros de tinta e os anos-luz dos sinais de satélite para reportar promessas, gafes, arrotos e puns dos democratas em disputa. Tudo lembra a cuidadosa cobertura da eleição para comodoro do Iate de Brasília (sem os arrotos nem os puns).

Um favorzinho

Com uma diferença. Na eleição do Iate, a gente ficava sabendo o que ia acontecer com as piscinas ou como seriam calculados os ingressos das festas, caso Hasselmann ganhasse de Atuch ou vice-versa. A imprensa candanga esmerava-se nos detalhes sobre as plataformas eleitorais dos candidatos. Era a única eleição, então os destemidos repórteres iam a ela com todo o vigor. Já na disputa pelas prévias norte-americanas o que acompanhamos é apenas uma insossa corrida de cavalos, que sequer cavalos tem (ou tem?). Dei-me à pachorra de verificar, através dos informes de uma empresa de clipping, o conteúdo do noticiário sobre as prévias democratas durante toda uma semana. Fiquei sabendo, após me banhar em hectolitros de tinta de impressão e assistir a alguns anos-luz de informes transmitidos por sinais de satélite, que um tal John Kerry, senador por Massachusetts, é o favorito, pelo menos até aqui. Gostaria muito de saber o porquê do favoritismo do cara, mas infelizmente devem ter faltado umas gotinhas de tinta e uns segundinhos de satélite para que pudessem me dizer. Em compensação, soube que o rapaz já usou botox, é um confesso maconheiro e, há alguns anos, fez plástica para reduzir o tamanho do queixo. Razões mais que suficientes, como se sabe, para que alguém aspire a ser presidente da mais poderosa nação do planeta.

Nossa velha mania de republicar bovinamente, na forma e no conteúdo, os informes produzidos pelas agências internacionais tem nos levado a reproduzir até mesmo o entusiasmo esportivo da imprensa norte-americana por uma disputa que acontece no quintal lá deles. A nenhum editor tupiniquim parece ter ocorrido que a Joana, manicure do salão aqui da esquina, está se lixando para Kerry, Dean e Edwards. Tudo bem que talvez valha a pena fazê-la se interessar pelo assunto, já que os caras de lá têm umas bombas incríveis e são eles que fabricam as notas de dólar. Mas, convenhamos: forçar a Joana a repetir o nome de Kerry, Dean ou Edwards é um pouco demais. Ainda se dissessem a ela que, se Kerry for o escolhido e caso seja eleito, o preço da acetona vai cair, ainda vá lá. Mas a simples transmissão de uma corrida de cavalos que acontece a alguns milhares de quilômetros daqui é apenas maçante para ela. E é por isso que toda vez que vou cortar o cabelo no salão onde Joana trabalha encontro o rádio tocando pagode. É muito mais divertido. Ê saudade das plataformas eleitorais de Hasselmann e Atuch na disputa pela comodoria do Iate…

(Ah, um favorzinho: pergunte aí na vizinhança e se puder mande dizer aqui pra gente se alguém sabe se Kerry pretende mandar limpar as piscinas ou se Edwards promete baixar os ingressos das festas daqui, caso vença a eleição. Valeu).

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(*) Jornalista, pesquisador, professor da professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Este artigo é parte do projeto acadêmico ‘Telejornalismo em Close’, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para