O escritor norte-americano Howard Fast contou no livro “A Última Fronteira” como trezentos indígenas Cheyennes tentaram recuperar suas terras roubadas pelos colonizadores. A história dos EUA começou com invasões e desapropriações de terras. Os heróis do faroeste, alguns deles imortalizados em filmes épicos da conquista do Oeste, ganhavam sempre dos valorosos guerreiros indígenas por terem as armas de fogo deles desconhecidas: fuzis e revólveres. Na verdade, eram ladrões e assassinos, numa época em que os indígenas não tinham seus direitos reconhecidos por leis nacionais e internacionais.
Nossos indígenas, até antes da chegada de Bolsonaro, eram protegidos pela Funai, mas estão sendo massacrados e suas terras roubadas por garimpeiros, pecuaristas, plantadores de soja, dentro de um plano de ocupação da Amazônia. O plano de Segurança Nacional de Golbery, durante a ditadura militar, numa adaptação canhestra de Bolsonaro, entregue a um suspeito de tráfico de madeira, o atual ministro Contra o Meio-Ambiente, Ricardo Salles.
Muita gente já esqueceu, mas o “mito” ou Messias enviado por Deus, já havia afirmado na campanha eleitoral sua sentença: “se eu for eleito, índio não terá nem um metro!” E, contando com o apoio de Ricardo Salles, vem sendo fiel à sua palavra. As denúncias aparecem na grande imprensa: existem fazendas dobrando de tamanho, entrando nas áreas protegidas dos indígenas. No imaginário de Bolsonaro, o centro do Brasil deverá se transformar numa repetição dos filmes do faroeste norte-americano, com nossos caubóis criadores de gado e plantadores de soja liquidando covardemente nossos indígenas, sem resistência, pois não são nem Sioux e nem Cheyennes.
Entretanto, sequestrar aos indígenas suas terras, à força ou na mira de fuzil, e distribuir títulos de propriedade para pecuaristas e agricultores, constitui uma flagrante violação da Constituição. O artigo constitucional 231 constituiu um grande avanço na legislação brasileira, na proteção das populações indígenas, reconhecendo seus direitos originários sobre as terras que ocupam. Esse mesmo artigo afirma o direito dos nossos índios à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
Ora, o governo Bolsonaro fiel ao seu programa de “nenhum metro de terra para índio” tem violado todas as leis protetoras dos indígenas e isso, é importante destacar, com o apoio dos chamados evangélicos, deturpando suas próprias referências bíblicas da igualdade de todos perante Deus (exceto os indígenas, provavelmente considerados pagãos demais para entrarem no Reino dos Céus). Essa exclusão dos indígenas também ocorreu na conquista do Oeste norte-americano, deixando a impressão de não descenderem do mesmo casal na versão criacionista da humanidade.
Já no primeiro dia de governo, Bolsonaro havia editado uma Medida Provisória, de número 870/19, transferindo a atribuição da demarcação das terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura, de Tereza Cristina, ativa líder dos pecuaristas e ex-presidente da bancada ruralista na Câmara Federal. Essa iniciativa visava acabar com as demarcações das reservas naturais indígenas, deixando aos ruralistas “integrar os índios na sociedade brasileira”, retirando-lhes as terras. Uma repetição do ocorrido nos EUA, onde num exemplo entre muitos, os índios Cheyennes, que viviam nas terras férteis de Black Hills, foram transferidos para Oklahoma, onde não se adaptaram devido ao clima e à malária.
Entretanto, a Medida Provisória 870/19 foi considerada inconstitucional em maio e a gestão das terras indígenas devolvida à Funai por decisão do Congresso. Por sua vez, a Funai voltou a integrar o Ministério da Justiça, deixando o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, para onde tinha sido jogada por Bolsonaro.
Isso atrapalhou os planos do presidente de acabar com a proteção das reservas indígenas, por isso, no seu estilo do faço o que quero, Bolsonaro voltou a reeditar a mesma Medida Provisória, em junho, desta vez com o número 886/19. Levada ao STF, foi considerada inconstitucional pelo ministro Barroso, no que se refere à demarcação das terras indígenas, atribuição mantida com a Funai.
Isso não impede a invasão e ataques das reservas indígenas, inclusive da maior delas, o Parque Xingu. Se no passado, os indígenas tiveram os irmãos Villas Boas como seus protetores, hoje não passam de obstáculos à expansão de pastos e plantações.
Embora pouco comentada na imprensa, a última manifestação de bolsonaristas em Brasília deixou evidente haver uma importante união de forças entre ruralistas e evangélicos, talvez subestimada nas análises. Um encontro de grupos conservadores, que está mudando o quadro político no Brasil, uma equação difícil de se demonstrar.
De um lado, o peso econômico dos grupos agropecuários, ligados ao desmatamento, ao fim da demarcação das terras indígenas, dispostos a usar da violência; do outro, os grandes grupos de seguidores evangélicos, formado principalmente de fiéis pobres, contrários à violência, mas sensíveis à uma manipulação caso necessária. Onde começou o encontro entre esses dominantes e dominados, criador de um coeso populismo de extrema-direita, a base sólida de Bolsonaro, avaliada em um terço dos eleitores? Uma boa tese a ser desenvolvida!
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.