Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Esta terra tem dono (Bolsonaro, a imprensa e os Guarani-Kaiowá)

(Foto: Arquivo pessoal – Norma Couri)

Desde que Ricardo Salles viralizou na imprensa, em fevereiro, posando de cocar à frente dos Parecis, os indígenas nunca mais saíram da mídia, culminando esta semana na matéria do jornal Valor que garante ótimas chances para Raoni levar o Nobel da Paz em 2020. Se Bolsonaro não ficou vexado ao atacar o líder Kaiapó na Assembleia Geral da ONU, o ministro do Meio Ambiente ficou muito menos ao afirmar no Roda Viva que não sabia quem era Chico Mendes. O que ambos conseguiram foram amargas críticas, no Brasil e no exterior, um chamando a atenção internacional para a candidatura de Raoni, o outro engolindo declarações dos indígenas afirmando não saber quem é Salles. Com o destaque das queimadas da Amazônia, os indígenas viraram protagonistas neste Brasil desmatado, até porque, como Bolsonaro especificou na ONU, “14% do território brasileiro está demarcado como terra indígena…o Brasil não vai aumentar para 20%, como alguns chefes de estado gostariam”.

Os indígenas apontam falhas no discurso do presidente. “Somos indígenas, não índios, organizados em grupos étnicos, não em tribos, e falamos línguas, não dialetos”. Entre os 305 povos – e não 225 etnias, como Bolsonaro afirmou na ONU -, estão os  Guarani, que, ao juntar as parcialidades  Kaiowá, Mbya e Nhandewa, tornam-se o maior grupo étnico entre os indígenas brasileiros. O que eles fizeram semana passada foi ocupar as Faculdades de Ciências Sociais e História e Geografia da Universidade de São Paulo (USP) num Seminário Internacional sobre Etnologia Guarani, com a presença de guaraniólogos e tupinólogos “de formação e coração”, como o professor Renato Sztutman gosta de se identificar. “A etnologia Guarani é umas das mais pulsantes”, disse Stutzman, afirmando que só São Paulo possui duas terras Guarani. Os indígenas concentram-se no Mato Grosso do Sul (50 mil) e, ao ocupar o palco da USP, ensinaram que os humanos perderam o contato com as divindades, o que é uma pena, porque a terra das divindades é uma terra sem mal. Os colonizadores tentaram acabar com o saber indígena de várias formas, primeiro aculturando e, agora, matando. Mas os indígenas, principalmente os Guarani, resistiram, nunca abandonaram suas terras e seus princípios, resistindo aos vários estágios de guerras com a Funai e fazendeiros.

O professor húngaro da Universidade de Viena, Georg Grunberg, explica a diferença entre terra e território para o indígena, que nada tem a ver com fronteiras, exército, mapas, limites como nós entendemos. Os Guarani têm outra visão de territorialidade, espalhada pela Argentina, Paraguai, Bolívia e Brasil. “Eles não são Guarani do Brasil, mas no Brasil”.

O ponto alto do seminário foi provar que, hoje, os índios são universitários e defendem eles próprios seus princípios. Como Anastácio Peralta (PPGET/UFGD), que deixou claro: “não é a terra que nos pertence, nós pertencemos à terra”.

(Foto: Arquivo pessoal – Norma Couri)

A questão territorial ocupa um papel importante pelo processo de confinamento dos Guarani em reservas apertadas – uma família precisaria, no mínimo, de um ou dois hectares e os espaços cedidos não permitem nem a plantação de subsistência. O que provoca depressão e desânimo, somados aos conflitos violentos com fazendeiros e agropecuários e à exploração ambiental. Com sua continuidade ameaçada, os Guarani foram capazes de manter a floresta, não abandonar a terra, resistir.

A capa da revista Galileu de outubro é um indígena, um jovem ativista como o cacique Mapu Huni Kun, o que só chama a atenção para os líderes de movimentos que querem nos salvar da emergência climática. O momento, queiram Bolsonaro e Salles ou não, é deles.

Dirce Carrion é arquiteta é há oito anos luta para colocar os indígenas na pauta do dia. “O projeto teko joja (modo harmonioso de ser) é fruto de muita escuta, de constante aprendizado e imenso respeito pela resistência e perseverança dos Guarani e Kaiowá, que lutam pela defesa de seus territórios, pela garantia de seu modo de vida tradicional, pela preservação do meio ambiente no Mato Grosso do Sul. Segundo eles, é uma possibilidade de olhar para a realidade com sua própria cosmovisão”. O projeto inclui um histórico desde a chegada dos primeiros colonizadores no século XVI com a violenta exploração de mão de obra (para cultivo de erva-mate), os mitos do sol e da lua, o surgimento da Terra. E vai continuar. “No mínimo, é preciso solidariedade pelo que estão passando, há suspeita de muita depressão causada pelo uso dos agrotóxicos na região”.

Spensy Pimentel, jornalista e antropólogo, professor da Universidade do Sul da Bahia, pesquisa há vinte anos o processo de expropriação territorial e apropriação de recursos naturais – terra, água, madeira – e a violação dos direitos básicos da comunidade Guarani-Kaiowá. “No Mato Grosso do Sul, o agronegócio tornou-se um dos pilares do modelo econômico baseado na exportação de commodities primárias”. Spensy refere-se ao mar de soja, cana-de-açúcar e pastagem para gado bovino nas terras reivindicadas pelos Guarani-Kaiowá – que, antes, abundavam em diversidade, matas ricas, madeiras nobres como peroba, cedro, aroeira. Desde os anos 1980, os Guarani-Kaiowá lutam pela recuperação de suas terras, que nunca chegam ao estágio final – identificação, demarcação homologação -, e não conseguem a ocupação, o que contraria a Constituição de 1988. Não desistem, mas pagam o preço.

“Morre um indígena por semana, a média é de três indígenas para um não indígena, o índice de assassinatos chega a ser superior ao de um país em guerra. Os suicídios e a desnutrição infantil aumentam. Eles angariaram solidariedade nacional e internacional em função da mídia noticiando a luta ferrenha e desigual pela demarcação de suas terras”, diz Spensy.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denuncia uma vez mais o sofrimento e as angústias dos povos indígenas gerados pelas violências praticadas ao longo do ano passado. “Em todo o país, a natureza está sendo dragada por madeireiros, mineradores, garimpeiros, grileiros e pelo latifúndio, mas a cobiça mais explícita é sobre a Amazônia”. As violações tornaram-se regra, não exceção. Os Guarani ocupam apenas 29% das terras indígenas no Mato Grosso do Sul e, só no ano passado, os indígenas sofreram 204 ameaças de morte, 135 assassinatos, enorme mortalidade infantil (591 em todo o país) e 101 casos de suicídio, o maior deles no Mato Grosso do Sul (4), em dados do Cimi. E de janeiro a setembro de 2019, o Cimi contabilizou 160 invasões às terras indígenas, contra 109 no ano passado.

Eliel Benites, primeiro Guarani-Kaiowá a se tornar professor universitário na Federal de Grande Dourados – Dourados é a área mais problemática – assusta-se com a expansão dos evangélicos, que é uma repaginação das missões jesuíticas, mais agressiva, com enorme violência moral. A violência real existe há muito tempo. “Em 2015, o Parlamento Europeu denunciou genocídio em massa. Mas a invasão dos evangélicos mina e derruba os centros políticos e espirituais, espaços sagrados e de fortalecimento dos Guarani, que são as Casas de Reza. Só em Dourados, há noventa templos evangélicos e duas Casas de Reza. É uma ocupação política”.

Spensy Pimentel explica: nas Casas de Reza, os xamãs surgem como figuras importantes na luta pela terra, fundamentando o sentido dessa ação política com profecias sobre o retorno dos tempos de fartura e alegria a partir da recuperação do antigo território indígena, a recuperação também do contato com os espíritos da terra e dos ancestrais. Essa é mais uma catástrofe provocada pela ascensão dos evangélicos no governo Bolsonaro, ganhando espaço nas terras indígenas. Tudo é política.

Eliel Benites pouco vem a São Paulo, mas quando põe os pés aqui, horroriza-se com o monumentos aos bandeirantes. “Os Guarani foram escravizados por eles. Em Santana do Parnaíba, há um monumento horrível, indígenas acorrentados, negros no chão, bandeirantes vitoriosos”. A mão de obra de milhares de Guarani foi utilizada para a construção do Brasil e, por isso, Mário de Andrade foi buscar na divindade indígena Makunáima, que habita o Monte Roraima, inspiração para Macunaíma, herói que explica a formação do povo brasileiro junto com o negro.

No Mato Grosso do Sul, Eliel Benites começa a se sentir mal também com a discriminação aos indígenas. “Um dos bares em Amambai se recusou a servir cerveja ao nosso grupo porque havia um indígena na mesa, eu. E, na cidade, nem consegui fazer um B.O.”

Em seu discurso na ONU, Bolsonaro citou “alguns líderes, como o cacique Raoni, usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia…nessas reservas, existe grande abundância de ouro, diamante, urânio, nióbio e terras raras, entre outros”.

Bolsonaro esqueceu-se do principal. Eliel Benites aponta o elemento esquecido: água potável. “Os Guarani-Kaiowá estão estabelecidos em cima do lençol freático, água potável, riqueza mental maior não há, água potável, temos em abundância embaixo do cerrado brasileiro. O cerrado usado como produção para o agronegócio só vai contaminar as águas. Entre setembro e março de cada ano, a massa de chuva concentra-se na Amazônia, mas se essa massa de ar se extinguir com as novas formas de produção e a monocultura, a terra fica seca e teremos uma grande desertificação – é contra isso que nós continuamos a luta pela diversidade de produção.”

No fundo e no claro, o que o cocar de Ricardo Salles e a oposição ferrenha de Bolsonaro estão criando é um interesse cada vez maior pela raiz indígena. Mês passado, uma reportagem na Folha de S.Paulo relatou a autorização, no Vaticano, pela canonização do Guarani Sepé Tiaraju (1723-1756), morto durante a batalha em que tentava proteger 30 mil indígenas de uma remoção forçada pelos exércitos português e espanhol. “Esta terra tem dono, nos foi dada por Deus e São Miguel”, alardeava ele, antes de morrer junto com 1500 indígenas na região onde hoje é a cidade de São Gabriel (RS). O Guarani é considerado herói nacional, registrado no Panteão da Pátria ao lado de Getúlio Vargas e Leonel Brizola, e povoa o imaginário dos gaúchos em poemas como O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, e no romance de 1975 que leva seu nome no título, de Alcy Cheuiche.

Tudo parece contrariar Bolsonaro e o cocar de Salles. “Acabou o monopólio do senhor Raoni”, disse Bolsonaro. O coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Dinaman Tuxá, reagiu em O Globo, mês passado: “Nós somos 305 povos – não 225 etnias -, falantes de 274 línguas, e todos estamos com Raoni”.

***

Norma Couri é jornalista.