Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Emicida e Machado de Assis contra o mal sagaz

(Foto: Visuals/Unsplash)

“Reconheça a sério que o mal foi sagaz”, é assim que, machadianamente, o rapper paulistano Emicida solta um verso crucial no meio da bela e aérea melodia da música “Paisagem” – do disco Amarelo. Os arpejos da guitarra elétrica, ao longo de toda canção, não disfarçam a denúncia à apatia social frente ao racismo estrutural – nosso mal mais sagaz. Como ignorar tais críticas nos versos: “agora quantas árvores condecoram nossos raptores/nos arredores tudo já pertence aos roedores//é louco como adianta pouco, mas ore, talvez piore//não se iluda, pois nada muda//em um silêncio que nos permite ouvir as nuvens cruzar o céu// ver que os monstros aqui têm origem// Dizem os jornais, calma rapaz, tudo está em paz”?

Toda essa habilidade linguística e artística é típica do rapper que ganhou notoriedade nas batalhas de rima nas periferias e centros do país, neste início de século XXI. Típica também da ironia fina e secular de Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho, o negro escritor que, em pleno século XIX, faz uso de sua “Estratégia de Caramujo” na arte da literatura para mostrar os podres da burguesia aristocrata de seu tempo. Foi assim que sobreviveu e virou gênio em uma sociedade marcada por diferenças estruturais – vide o conto “Pai contra mãe”, em que as inúmeras violências simbólicas e físicas recaem sobre uma mulher negra e escrava.

Não é exceção, é norma, tanto em Machado de Assis quanto em Emicida, a denúncia ao mal sagaz que nos estrutura. Não é a primeira e nem será a última vez que Emicida -irônico- usará de versos críticos em contraste com uma melodia leve para destilar sua verve contra o sistema; nota-se isso na harmoniosa canção “Passarinhos”, em dueto com Vanessa da Mata. Lá, embora a canção faça os pássaros “voarem dispostos”, a letra não deixa brechas, pois vai insidiosamente denunciar o agronegócio, a depressão, o uso abusivo de agrotóxicos, a crise hídrica, a sociedade do desempenho, o capitaloceno –a próxima extinção em massa no planeta. Já ouviram e leram os versos: “E dá-lhe antidepressivo// em colapso o mundo vira// a babilônia é cinza e neon// cidades são aldeias mortas/ desafio non sense/ competição em vão que ninguém vence// quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus // água em escassez, bem na nossa vez// assim restam nem as baratas//escolha qual veneno te mata”?

Diante desses versos, o que vejo é a realidade óbvia declarada por uma camada de arte –um espelho de Perseu para enfrentar a monstruosa realidade, um jeito humano de não se desumanizar e ou petrificar. Assim é Emicida, assim fora Machado de Assis na mídia de sua época –ocupando a Literatura e os jornais. Sem exceção, ambos lidam com a norma da denúncia. Só não vê quem não quer, ou quem já não ouve, mesmo tendo suas plenas capacidades ópticas, auditivas e reflexivas. Pior ainda é quando isso parte de alguém com respeitado lugar de fala em nossa sociedade: pois, não dá para tratar exceções como regra, anedotas como ciência, casos isolados como norma. Porém, tristemente, essa foi a atitude do antropólogo baiano Antônio Risério, em artigo de opinião, publicado na Folha de S.Paulo, no último dia 15 de janeiro de 2022, intitulado “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”.

Antônio Risério faz parte, neste artigo na Folha, do mal sagaz. Para mim, o artigo pode ser implodido pelo seu final, quando o autor escolhe a norma, a partir das exceções que pinça durante o artigo, para falar de uma generalização absurda: “O neorracismo identitário é exceção ou norma? Infelizmente, penso que é norma.” Aqui, neste trecho, ele mostra sua visão pessoal e anedótica e nela se fundamenta, como disse, apenas baseado em exceções. A norma, pensa ele, são as exceções que recolhe. E elas são anticientíficas, absurdas, delirantes e graves. Amplamente graves em uma sociedade em que o racismo é um sistema político, social, jurídico, midiático e histórico.

Antônio Risério pinça casos isolados –anedotas- para tentar denunciar um suposto “racismo reverso”. E assim nega o que nos estrutura, para apoiar-se em pilhérias da vida de negros e negros que tiveram em suas trajetórias contradições, como a de Abdias do Nascimento com passagem pelo movimento Integralista, ou em exemplos majoritariamente estadunidenses. Falo isso porque o texto de Risério é embebido de um pensamento colonizado que vê nos EUA nosso pilar de referência. São oito exemplos de “racistas antibrancos” do hemisfério norte, sete deles nos EUA e um no Canadá. Casos isolados no metrô de Washington, falas de adolescentes no Brooklyn, brigas de gangues em Michigan. Estes são os exemplos que viram norma para Risério. Todos vindo dos EUA. Lugar que teve uma guerra civil sangrenta e declarada e onde há apenas 11% da população negra, hoje. Quem estuda um pouco de História das Américas, sobre Guerras de Independência ou Guerras Civis, irá logo esbarrar no extermínio negro dos EUA e quais são as consequências antropológicas disso. O outro exemplo, vem do Canadá, atribuído a uma “jovem mulata sudanesa”. É com esses termos saídos do esgoto do século XIX que Risério cita uma ativista que é uma exceção dentre pessoas que valem a pena ouvir falar. Ela não representa a luta dos negros. Ela não me representa e muitos dos meus, posso garantir. Não representa Lélia Gonzalez, nem Djamila Ribeiro, nem Sueli Carneiro, nem Angela Davis, nem Silvio Almeida e Thiago Amparo. A norma para essas e esses intelectuais hoje é a luta pela igualdade de direitos e pela não violência; mesmo que suas trajetórias apresentem contradições, a regra em seus escritos é o antirracismo, pois isso é ser antissistêmico. A missão delas e deles, portanto, nossa, é de enfrentamento ao “mal sagaz”, assim como as artes de Emicida e de Machado de Assis fazem tal enfrentamento.

Risério não se vê satisfeito e diz: “Ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo.” E mais, para piorar, vaticina sem mostrar provas, sem comprovar com exemplos o absurdo que é o parágrafo: “O fato é que não dá para sustentar o clichê de que não existe racismo negro porque a “comunidade negra” não tem poder para exercê-lo institucionalmente. Mesmo que a tese fosse correta, o que está longe de ser o caso, existem já meios para o exercício do racismo negro.” Risério é o próprio clichê do homem branco doído.

Não, Antônio Risério! Ninguém precisa ter poder para ser racista, mas quando o sistema é estrutural e historicamente racista, os instrumentos de poder privilegiam certos grupos, fazendo com que versos de Emicida sejam, verticalmente, verdadeiros: “Existe pele alva e pele alvo”. E não precisamos aqui – eu, você e os leitores – apontarmos quem é quem entre alvos e “alvos”. O óbvio grita de dor dilacerante e fatal a cada 23 minutos no Brasil. Isso não é exceção, é a covarde regra, é a triste norma.

Não, Antônio Risério! Existe racismo no Brasil e, pior, existem alguns negros que não se libertaram ainda da opressão do sistema e que acabam reproduzindo a violência estrutural, estruturante e sistêmica; como existem mulheres machistas que não se libertaram ainda – pois é assim que o patriarcado ainda persiste. Mas esses casos são poucos, cada vez menores, mais raros, muito poucos no meio de uma multidão de negros e mulheres. Por exemplo, Sérgio Camargo não é regra, é exceção. Nossa régua anda em outro nível. Ler mais Machado de Assis e ouvir Emicida pode ajudar-nos, a todos, a entender que exceção não é norma, mas pode, com eles no alforje dos dias, nos guiar para outras letras, outros versos, outros artigos de opinião com mais honestidade intelectual. Só para dizer ao final, que se o “mal é sagaz”, nós somos, por resistência, mais.

É preciso reconhecer a sério que o mal é sagaz. Dias antes, Tiago Leifert levou uma invertida desconcertante com o texto magistral do ator negro Ícaro Silva. A Folha também meses antes já havia perdido a intelectual negra Sueli Carneiro de seu conselho editorial. Agora, vale lembrar que o artigo de Antônio Risério na olha inaugura um ano em que “A lei de cotas” será rediscutida nos âmbitos legais e governamentais. O ano de 2022 só começou, mas logo veremos quem é mais sagaz hoje. Nossa resistência ou o conjunto de anedotas de alguns homens brancos?

Nós e nossas ancestralidades levamos a sério que o mal até aqui foi sagaz. Mas nossa resistência é mais.

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Fabrício Cesar de Oliveira, 43 anos, professor, poeta e doutor em Linguística e Filosofia da Linguagem pela Universidade Federal de São Carlos.