O pior lugar possível em nossa sociedade é o da mulher negra periférica. Mas o segundo pior é, precisamente, o do homem negro. Beto era um homem negro — apelido de João Alberto Silveira Freitas, pois chamá-lo pelo nome ou apelido é uma forma de reconhecer a humanidade de mais um negro tantas vezes desumanizado. Beto era desse “não-lugar”, do pior lugar social. Desde quinta-feira, 19 de novembro, não respira mais. Foi brutalmente assassinado por dois homens brancos. Seus 4 filhos não têm mais um pai para o natal. Seu pai não tem mais seu filho para o diálogo. Sua companheira não tem mais seu marido para dividir esses lugares doloridos e (im)possíveis. Um crime de racismo interrompeu a vida de Beto. Além disso, ajudou a cavar mais o buraco do pior lugar possível na sociedade brasileira: o de ser negro. E parte da imprensa tem responsabilidade pela cova cavada do racismo.
Há várias camadas a serem discutidas em um crime de ódio. O assassinato por racismo, como crime de ódio, revela coisas óbvias para pessoas negras no Brasil, mas que precisam ser explicitadas a todos, principalmente aos brancos.
O jurista preto, filósofo e professor Silvio Almeida, autor do livro “Racismo Estrutural” (2019), afirmou em entrevista para a CNN Brasil que “Os brancos não podem fazer o papel de algodão entre cristais. Ou seja, eles não podem ficar pedindo moderação, eles não podem querer liderar o movimento negro, eles não podem ficar pedindo calma, enquanto nós estamos sendo assassinados”. E o mais simbólico da fala de Almeida é que ela foi dita na emissora que contratou William Waack depois de demitido da Globo por uma fala racista (“Preto! É coisa de preto!” para um buzinaço na rua perto a entrada do estúdio em que estava); mais contraditório ainda foi ver a cobertura dos protestos da própria CNN Brasil durante as manifestações do povo nas ruas em uma unidade do Carrefour, na avenida Pamplona, em São Paulo, dizendo que “Vândalos depredam mercado em São Paulo”. São as contradições que temos que enfrentar. Ora como se a linguagem não deflagrasse uma das camadas da brutal violência, ao chamar genericamente de “vândalos” pessoas revoltadas com os inúmeros casos de crime de ódio ocorridos, ao longo de anos, na rede multinacional de supermercados. Vidros não sangram. Vidas negras sim. Essa troca simbólica de lugar do objeto pela vida humana é a mais radical das violências: a desumanização.
Nesse processo ininterrupto de desumanização de pessoas negras, há outra camada violenta, pouco debatida. Talvez por ter se tornado tabu. A questão a ser trazida aqui à tona é o construção imagética e sócio histórica da segunda maior ameaça ao patriarcado: o homem negro, a masculinidade negra. A primeira grande ameaça será sempre a mulher consciente da luta de classes, de gênero e de sua raça. Nesse segundo lugar está Beto, homem negro.
O jornalista Rodrigo Constantino, homem branco, demitido de vários meios de comunicação nas últimas semanas (como Jovem Pan e Record, por exemplo) por sua postura machista, misógina e odienta, chegou a escrever um texto perverso na “Gazeta do Povo” justificando a ação covarde dos seguranças: “O homem, um sujeito enorme, teria ficha corrida na polícia e teria agredido uma funcionária do Carrefour. Por isso ele foi espancado, não pela cor da pele”. Ora, a afirmação de Constantino é mentirosa, agressiva e não se sustenta. Beto não agrediu uma funcionária (mulher) como mostram as imagens de todo o percurso dentro do Carrefour. Ele foi perseguido, vigiado e coagido por funcionários, homens brancos, da loja. Constantino é tão frágil no seu dizer que escolhe o verbo “ter” no subjuntivo, o que denota incerteza (“teria agredido” — “teria ficha corrida na polícia”) mas justifica com um “Por isso foi espancado”. E ainda piora quando justifica o injustificável, dizendo que Beto foi agredido por ser “um sujeito enorme”. Costantino consegue descer ao fundo do poço na desumanização, da objetificação, da reificação de um homem. O certo é que Beto foi morto, brutalmente espancado, foi asfixiado por mais de 4 minutos. Não há justificativa e malabarismo retórico para o que ocorreu. Mais uma vez vale dizer, Beto está morto. Pior, Beto foi desumanizado em sua própria morte. O recado que fica parece ser que homens negros não prestam a serem humanos, nem na morte, são objetos frios, sem vida, sem sangue, sem sonhos, sem potência.
Contudo, vale voltar a um dos pontos que mais salta aos olhos, pelo menos para mim, nesse trágico evento. Beto agride com um soco um dos seguranças ao ser expulso da loja por ser suspeito de alguma coisa que se sabe lá o que. Mas por que Beto tentou socar o segurança ao sair da loja? As explicações não morreram com Beto. Elas estão, infelizmente, cada vez mais ressaltadas e óbvias. Estão em camadas sobre camadas. Violências sobre violências. As inúmeras violências que um homem negro recebe ao longo da vida eclodem em mais violência, muitas vezes. Aquela ali foi a última de Beto. A atitude agressiva de Beto é indefensável. Reprovamos. Não a aprovo pela forma gratuita que foi. Nunca a aprovaria. Porém, ela é explicável no âmbito da análise histórica do racismo sobre, principalmente, o homem negro. Por isso é preciso dar um passo atrás aqui, um respiro, e analisar racionalmente a morte de mais um brasileiro periférico: é preciso analisar a construção da masculinidade negra na nossa sociedade.
A AMEAÇA DA MASCULINIDADE NEGRA
O escritor e fotógrafo Roger Cipó e o doutorando em antropologia pela USP Viny Rodrigues, em um ótimo artigo publicado na Revista Alma Preta falam da criação mítica do homem negro como monstro, desumanizado, demonizado ao longo da história da sociedade patriarcal branca ocidental e católica. E vão apresentar a figura do Exu como exemplar masculino ou de masculinidade negra, símbolo de potência criativa dos homens pretos, figura do movimento, mas também, por outro lado, é a divindade que mais sofreu e sofre com o processo preconceituoso de colonização. Exu simboliza o homem preto, contudo simboliza também, o que Frantz Fanon dirá como “não-ser”, não-lugar, não-Homem. Há um podcast, que é imperdível, em que ambos, Cipó e Rodrigues, discutem de forma ampla tais categorias que colocam o homem negro no lugar de diabo na terra dos homens brancos (Desafinados Podcast #9 – Masculinidades Negras, de 07 de Julho de 2020).
Roger Cipó e Viny Rodrigues colocam “o homem negro como a principal ameaça ao patriarcado”. Chegam a dizer que a “Masculinidade Tóxica” é uma expressão inadequada pela sua generalização, pois a masculinidade tóxica é a masculinidade hegemônica, que é branca. Ou seja, a verdadeira masculinidade tóxica é a “Masculinidade Branca”. Apresentam números e dados que comprovam que o homem negro é o mais perseguido, mais exterminado na história e atualmente, o que menos está no ensino superior, o com menor escolaridade, o com maior evasão escolar porque tem que trabalhar mais cedo, o mais alvejado por tiros, a maioria dos presos, ou seja, é um dos elos mais vulneráveis de uma sociedade racista, em uma pirâmide que coloca a mulher branca ainda acima do homem preto.
Tristemente, na ponta da vulnerabilidade absoluta e social está a mulher negra periférica. Chegam, os dois entrevistados, a dizer que o “feminismo negro nunca odiou o homem negro” pela própria contribuição que a maioria dos homens negros dão a suas comunidades, mas algumas linhas do feminismo branco radical chegam a “monstrificar” os homens negros (fazendo parte, contraditoriamente, do patriarcado hegemônico branco que tanto dizem querer destruir), ou mesmo a odiar todos os homens, isso tudo nas palavras dos dois entrevistados do podcast. Além disso, segundo os autores, é importante lembrar que há um grande projeto de extermínio das populações periféricas negras desde a colonização e final da escravidão — uma Necropolítica, em que a Estado soberano decide quem pode viver e quem deve morrer, segundo o filósofo camaronês, Achille Mbembe.
Embora sejam muito proveitosas as proposições e provocações dos dois teóricos, vale lembrar que a principal ameaça ao patriarcado será sempre a mulher, ainda mais mulheres periféricas, pretas e mães solo, pois são as mais exploradas pela máquina de moer gente sob a qual todos vivemos. Mas, por isso afirmo, que a segunda principal ameaça ao patriarcado é sim o homem negro, pois esse está no segundo pior lugar da sociedade. É o mais ameaçado de extermínio. O homem negro é uma encruzilhada entre o ser e não-ser, ele é uma encruzilhada de “ameaças”, pois é tanto a figura do “ameaçador” quanto a figura do “ameaçado”. Diante disso, o homem negro não existe, não é benquisto, não é bem visto na sociedade. Beto era homem negro. E esse o lugar da não existência e era o de Beto.
Por isso, não há como pensar no homicídio racista de Porto Alegre, na véspera do dia da Consciência Negra, sem fazer dialogar a experiência de masculinidades negras. Afinal, como o homem negro existe nesse mundo ameaçador? Como ele sobrevive em meio a tantas violências, violações, opressões, apagamentos, silenciamentos e extermínios de iguais? Para quem ele chora ou reclama ou divide sua dor existencial, humana e vulnerável?
Em um dado revelador sobre a violência no Brasil, a maioria dos policiais mortos no Brasil é de negros. Na polícia que mais mata, que mais morre e mais comete suicídio no mundo, é o homem negro, mais uma vez, o elo mais frágil da corrente.
Não há como pensar em lutas antirracistas sem passar pela existência física e simbólica do homem negro; não há como não ser atravessado pelas camadas de desumanização histórica do homem preto; não há como pensar uma sociedade justa e democrática sem a participação da maior parcela da sociedade, que é negra, nos lugares de decisão (cargos executivos, legislativos, jurídicos e de formação, como professores, jornalistas, escritores, historiadores, pesquisadores); como não há como fechar os olhos para as mudanças que as mulheres estão trazendo ao mundo, pelo empoderamento e lugares de fala, assim devemos também buscar o diálogo com as mulheres — principalmente negras —, por mudanças de postura e de atitude das nossas próprias masculinidades.
O crime de ódio ocorrido contra Beto, com socos no rosto, com chutes, com reação desproporcional de dois indivíduos brancos, mostra que a desumanização dos corpos negros vem de longe e alimenta sentimentos irascíveis, irracionais e incontroláveis em algumas pessoas, as quais não conseguem respeitar o corpo negro como potência viva, como humanidade, como ser em essência. Essa brutal desumanização vem de longe, vem do Renascimento Cultural, diria Silvio Almeida; vem do teatro de Shakespeare na figura do colonizado Calibã ; vem por meio da violenta transfiguração, por parte do Ocidente católico e evangélico, de entidades africanas como Exu no candomblé. E todas essas violências atingem homens negros como Beto. Asfixiando-nos há séculos, cotidianamente, com o joelho nas costas. Não nos esqueçamos que a miscigenação brasileira foi feita em cima de estupros e violências sexuais de homens europeus sobre mulheres indígenas e negras, com forte extermínio de homens negros, como aponta estudo recente da USP – FAPESP, o “DNA do Brasil”.
Ser homem negro é uma encruzilhada ameaçadora. As acusações aos homens negros continuam, mas antes de tudo é preciso cuidar dos nossos, da vulnerabilidade dos nossos, afinal homens também sofrem, também choram, embora se negue até isso a nós: o direito de sermos humanos e passíveis de erros e aprendizados futuros. Precisamos nos cuidar enquanto seres humanos, homens, mulheres, trans, entre outros.
Homens negros, como eu, também sofrem, pois o racismo está em todo lugar. Nas coisas mínimas, ora ele cresce e aparece, ora ele tenta se esconder em coisas mínimas. Por exemplo, outro dia, por falta do que ser “acusado” por pessoas brancas, fui acusado de cometer gentileza (pode parecer absurdo, né?! Mas não, foi isso mesmo), tudo por que sou educado demais com as pessoas e tenho a escuta democrática como índole. Mas nada se compara ao que houve mais recentemente, em que “fui acusado” de escrever bem demais. Impressionante como tentam até desumanizar aquilo em que você é mais coração e humano. É assim que o racismo age, nas superfícies, mas sempre revelando suas camadas óbvias da violência.
Mas confesso e desabafo, a escrita só ameaça aos que temem o ser humano como potência e liberdade. Contudo, não há nada mais ameaçador ao patriarcado do que um povo conscientemente antirracista.
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Fabrício Cesar de Oliveira é escritor, professor, poeta, preto, mestre em Linguística e doutor em Filosofia da Linguagem pela Universidade Federal de São Carlos.