A coceira de Lula
As notícias desencontradas sobre os números da devastação da Amazônia colocam os jornais brasileiros numa situação contraditória.
A rigor, a imprensa é contrária à intervenção do Estado nos negócios privados, mesmo quando esses negócios, no caso a agroindústria e a pecuária, são apontados como risco ao meio ambiente.
Mas, ao mesmo tempo, a imprensa precisa se apresentar como simpática à causa ambientalista.
Até por um questão de imagem.
A edição de hoje dos grandes jornais ressalta essa contradição: o espaço concedido à contestação dos dados sobre o desmatamento da Amazônia é hoje maior e mais nobre do que aquele que fora destinado à denúncia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.
No entanto, toda a imprensa sabe que a questão central não é o quanto se desmatou em 2007, mas o desafio de colocar um limite nas atividades econômicas que disputam território com a floresta.
A saída foi destacar mais uma sucessão de frases de pobre efeito do presidente Lula.
Todos os jornais repetiram a referência de Lula à suposta precipitação da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ao anunciar os números do desmatamento de 2007.
Lula disse, numa ocasião, que não se pode anunciar um câncer antes da biópsia e depois acrescentou que os responsáveis pelo anúncio, entre os quais a ministra, agiram como alguém que tivesse uma coceira e achasse que é uma doença mais grave’.
O que os jornais omitem é que se trata, sim, de uma doença gravíssima.
O ritmo de destruição da Amazônia pode não ter aumentado em 2007, se comparado a 2006, ano em que se registrou uma queda acentuada nas derrubadas e queimadas, mas isso não representa apenas uma ‘coceirinha’.
Essa é uma questão pontual que, ao ser destacada pelos jornais, esconde a causa central, que é a necessidade de conter definitivamente todas as atividades que produzem lucro com a destruição da floresta.
Esse é o desafio que nunca foi enfrentado por uma estratégia de governo.
Nem por este governo, nem por nenhum outro governo anterior.
Quanto à frase do presidente Lula, os jornais prestariam um serviço melhor ao País lembrando a ele e aos leitores que, como naquela comédia popular, ‘coçar e desmatar, é só começar’
Melhor se coçar
Frases e declarações disputam o valioso e limitado espaço dos jornais com informação de verdade, como a importância estratégica da Amazônia para o Brasil e para o mundo.
Não há como dissimular que essa importância é muitas vezes superior aos interesses específicos de exportadores de grãos, produtores de carne ou madeireiros.
Diante da necessidade de preservar a Amazônia, a imprensa não tem o direito de relaxar.
Alberto Dines:
– A imprensa informa, explica, educa, mas a imprensa também deve funcionar como um despertador público. Se abdica da função de chamar a atenção, descumpre uma das suas principais missões sociais. No caso do novo surto de devastação da floresta amazônica, a Folha de S. Paulo acionou o alarme na última segunda-feira. Nos dias seguintes, os jornais anunciavam dados assustadores fornecidos pelo INPE: só no último trimestre, foi desmatada uma área equivalente a quase cinco vezes a área da cidade de S. Paulo. O presidente Lula ficou impressionado, mandou checar. Fez o que se espera de um governante: alertado, tomou providências. Ontem o presidente deu marcha-ré, preferiu minimizar o alarme do dia anterior e saiu-se com nova metáfora ao afirmar que não se pode tratar uma simples ‘coceira’ como doença grave. Ora, coceiras às vezes indicam um câncer de pele. A situação da Amazônia é grave, não é de hoje e a imprensa faz bem em ligar as sirenes quando flagra a devastação. Um governante sensível aos alarmes e advertências inspira mais confiança do que um chefe de Estado desatento e bem-humorado.