Leitores assíduos de jornais que têm dificuldade para interpretar a massa fragmentada de notícias sobre política e economia, publicada diariamente pela mídia tradicional, têm nesta quinta-feira (18/6) um guia para entender a linha editorial predominante na imprensa hegemônica.
Como se sabe, desde a posse da presidente Dilma Rousseff em segundo mandato, desatou-se uma crise de governabilidade que tem como epicentro o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, convertido em desafeto da própria aliança que integra após ter o cargo ameaçado por um candidato apoiado pelo Executivo.
Até aí, são farpas no espinhoso caminho da democracia, sempre um jogo de perdas e ganhos no qual a única regra que não pode ser quebrada é aquela que protege a continuidade do próprio jogo – ou seja, ninguém pode colocar em risco a convivência democrática entre os contendores. Mas não é isso que tem acontecido: a intensificação do protagonismo da imprensa, que participa do torneio como convidada, desvirtua o equilíbrio proposto pelas urnas.
Inconformado com o resultado da eleição presidencial, na qual viu derrotado por pequena margem o candidato que apoiava, o sistema da mídia atenta conta o mandato conquistado pela presidente na contagem dos votos. Num primeiro momento, transformou em “voz das ruas” a manifestação de alguns grupos de analfabetos políticos inconformados com a decisão dos eleitores, insuflando a teoria do impeachment ao avalizar o discurso de lideranças fabricadas à base de entrevistas cuidadosamente editadas e maquiadas.
Mas a farsa acabou quando aquele que deveria ser o grande evento da temporada, a marcha de dissidentes rumo a Brasília, acabou em uma pífia reunião com parlamentares ligados à herança da ditadura militar. Os patrocinadores do movimento se viram obrigados a rejeitar suas crias, qualificando-as como “cidadãos sem educação política”.
A “coluna Aécio” se desmanchou na Praça dos Três Poderes com seus integrantes gritando palavras de ordem contra aquele que lhes havia dado o suporte institucional do mandato para sua aventura golpista.
Flertando com o perigo
Mas o partido midiático não desiste: o novo investimento é feito agora no julgamento das contas do Poder Executivo referentes ao ano fiscal de 2014. Em todos os principais jornais de circulação nacional, o noticiário sobre a decisão do Tribunal de Contas da União, de conceder um prazo de 30 dias para a presidente da República esclarecer 13 supostas irregularidades na execução do orçamento do ano passado, é acompanhado pela aposta de será recomendado ao Congresso que rejeite a prestação de contas; se isso ocorrer, opositores ganham munição para pedir o impeachment, sugerem os jornais.
A imprensa não pode, evidentemente, ignorar o processo que corre no TCU. Mas é preciso destacar que nunca antes o tribunal tinha feito mais do que “ressalvas”, em vez de rejeitar as contas de um presidente, e que o Congresso acumula um longo histórico de pareceres que nunca foram votados. A pressa e o empenho em colocar sob suspeição a administração da atual presidente faz parte do processo político de manter a governabilidade por um fio: é a perigosa contabilidade do golpe.
A Folha de S. Paulo, em texto menor num pé de página, relata como o tratamento pode ser diferente em circunstâncias semelhantes, ao informar que as contas do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), foram aprovadas pelo Tribunal de Contas estadual em apenas 90 minutos, sem qualquer restrição. Sabe-se, no entanto, que a corte ignorou dezenas de ressalvas feitas por seus técnicos, entre as quais se destacam atrasos em obras que causaram a falta de água na região metropolitana da capital paulista.
Há dois pesos e duas medidas, conforme quem está na pauta. Mas o texto que ajuda o leitor a entender o viés do noticiário é o editorial publicado na quinta-feira (18) pelo Estado de S. Paulo, sob o título “Uma guinada conservadora” (ver aqui). Ali se observa que o perfil dos deputados e senadores eleitos que compõem o atual Congresso “é o mais conservador da história recente da República” e que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, “é a mais legítima expressão dessa nova realidade”. Mas considera que a ascensão desse conservadorismo é decorrência dos “desacertos e contradições” dos governos petistas.
Nenhuma palavra sobre a ação da própria imprensa, que manipula as forças mais reacionárias do campo político para atacar o governo, e, com isso, convalida e estimula seu protagonismo. O editorial admite apenas temer que a ascensão desses grupos conservadores lhes permita “violar a laicidade constitucional do Estado”.
A História ensina que flertar com o obscurantismo faz mal à democracia.