A gangorra da economia
As manchetes de ontem dos grandes jornais brasileiros duraram apenas algumas horas.
Bastaram a abertura das bolsas de valores, com a notícia de que o banco central americano havia cortado os juros em 0,75 ponto percentual, e a avaliação de que os bancos dos Estados Unidos ensaiam uma recuperação, para que o pessimismo do dia anterior virasse pó.
Para o leitor que ensaiou uma compreensão da crise que abala os mercados, já por volta do meio-dia os jornais do dia serviriam para pouco mais do que embrulhar peixe.
O que define como o leitor não especializado vai entender a economia é menos o conjunto de números do que o tom que a imprensa escolhe para apresentá-los.
Observe o leitor o seguinte exemplo: durante a crise do início da semana, quando foi noticiada a venda do banco Bear Sterns por apenas 10% do seu valor de mercado, o Globo explicava que o Sterns era ‘o quinto maior banco de investimentos dos Estados Unidos’.
Essa informação ajuda a aumentar as preocupações.
Enquanto isso, outros veículos da imprensa, como o portal Exame, que é acessado por muitos jornalistas de economia, diziam que o Bear Sterns era ‘o menor entre os cinco maiores bancos independentes de investimentos dos Estados Unidos’.
Esse é o tipo da informação que ajuda a relativizar a notícia.
Hoje, o anúncio do corte de juros pelo banco central americano e as primeiras avaliações indicando alguma recuperação dos bancos dos Estados Unidos provocam o efeito contrário: a imprensa celebra a recuperação das bolsas em todo o mundo.
E junto com o otimismo vêm as explicações sobre a interpretação catastrófica dada à venda do banco Bear Sterns: o mercado teria reagido negativamente, com medo de uma quebradeira geral no sistema financeiro norte-americano.
Nas suas edições de hoje, os jornais explicam que a intervenção do banco central americano, facilitando a venda do Bear Sterns por um preço irrrisório, foi um sinal positivo de que as autoridades monetárias vão continuar apoiando o sistema financeiro para evitar o pior.
Nenhum jornal brasileiro apostou numa reportagem sobre o problema central, ou seja, a insustentabilidade de um sistema de apostas no qual os jogadores acham que vão ganhar tudo o tempo todo.
A atual crise mundial é pior do que a crise da Malásia, dez anos atrás, conforme lembra o presidente Lula, citado hoje em todos os jornais.
Apresenta características diferentes e tem seu epicentro na matriz do capitalismo global.
Mas pode ser resumida numa palavra: descrédito.
Evitando o ponto central
Os jornais brasileiros precisam explicar por que o sistema financeiro mundial perdeu a confiança dos investidores.
Não basta lembrar que os bancos americanos foram longe demais na concessão de créditos para negócios imobiliários.
Esse é apenas um aspecto do jogo, de qualquer jogo: quem tem a chance de ganhar mais, sempre arrisca mais.
O que a imprensa anda evitando é a discussão sobre a natureza do sistema.
Construída sobre o consenso de que o mercado é racional e auto-suficiente, a imprensa se nega a rever esse dogma, mesmo diante dos sinais inequívocos de irracionalidade.
Outra coisa que a imprensa ainda não explicou é a surpreendente imunidade da economia brasileira aos efeitos da crise mundial.
Além disso, falta esclarecer porque, aparentemente, essa proteção se estente a outros países da América do Sul com os quais o Brasil tem relações intensas de negócios.
Hoje, o Globo informa que alguns dos grandes bancos brasileiros já valem mais do que alguns gigantes do sistema financeiro norte-americano.
Se um jornal houvesse publicado, alguns anos atrás, que um banco brasileiro como o Bradesco ou o Itaú poderia comprar o banco Morgan Stanley, pouca gente iria acreditar.
Hoje que essa notícia está na imprensa, não basta noticiar.
É preciso contar como isso se tornou possível.
Os fatos aparentemente inexplicáveis, ou pelo menos surpreendentes da economia, têm um fundamento razoável, mas a imprensa se nega a se aprofundar nessas causas.
Talvez porque, lá adiante, todos saibam que a matriz da crise é o próprio sistema.
O sistema não é sustentável. Apóia-se na exploração irracional do patrimônio natural, sem atentar para as conseqüências futuras desse desastre.
O que se pode constatar ainda agora, é que, quando entra em crise, precisa da intervenção do Estado para não se desmanchar.
Seu principal produto não é a riqueza de alguns, mas a pobreza de muitos e sua racionalidade é uma ficção que os jornais ajudam a manter.