Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

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A miséria sumiu

Assim como entrou na pauta dos jornais, quarta-feira, dia 4, a miséria desapareceu do noticiário, no dia seguinte, resumindo-se a editoriais nos quais basicamente se manifestam votos de sucesso na empreitada de eliminar a pobreza extrema do País, assumida pela presidente da República.

Apenas a Folha de S.Paulo aborda o tema em reportagem, ainda assim para dizer que o indicador adotado pelo governo para definir a pobreza extrema reduz o valor previsto em investimentos sociais durante a campanha eleitoral.

Essa foi também a abordagem no editorial do jornal paulista.

Fora isso, nem uma linha a mais na chamada imprensa de circulação nacional.

A pobreza sempre foi, na imprensa, uma espécie de Aids ou lepra, assunto que precisa ser tratado à distância, ou com luvas higiênicas.

No fundo, pode parecer que a imprensa considera os pobres como uma categoria marginal da sociedade, com a qual e sobre a qual não vale a pena gastar papel e bits.

Nesse caso, trata-se da imposição de uma visão meramente mercadológica: se eles não lêem jornais, pouco importa o que fazem ou deixam de fazer.

No máximo, as empresas de mídia investem nas classes sociais intermediárias ou emergentes, para as quais podem vender seus títulos chamados de “populares”.

Trata-se de um erro estratégico em termos de futuro dos negócios de imprensa, mas, ainda mais grave, trata-se da preservação de uma visão de mundo elitista segundo a qual a imprensa deve se dirigir preferencialmente aos mais educados e mais bem situados na escala social.

Mas se o elitismo costuma ser analisado sob o crivo ideológico, as mudanças no perfil da sociedade brasileira observadas nos últimos anos – e noticiadas na quarta-feira pelos jornais – indicam que também do ponto de vista de mercado não é apropriado relegar a pobreza às páginas policiais ou a eventuais estudos sociológicos.

Se os projetos para eliminação da miséria forem tão bem sucedidos como os programas sociais do governo anterior, os pobres de hoje poderão vir ser a classe média de amanhã, e isso deve provocar grandes mudanças na sociedade, que incluem escolhas sobre o que comprar, o que ler, o que consumir.

Inclusive jornais e revistas.

Notícias Populares

Um exemplo de como a imprensa trata de maneiras diferentes os cidadãos conforme o estrato social a que pertencem está justamente na Folha de S. Paulo de quarta-feira, dia em que o tema da pobreza foi abordado por todos os grandes jornais.

A reportagem em questão se referia à “segunda porta” do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, destinada ao atendimento de pacientes pagantes, que possuem seguro-saúde privado.

O teor do texto indicava a possibilidade de diferenças no tratamento dos mais pobres e dos que possuem um convênio particular.

A impressão que passa para quem conhece o Hospital das Clínicas é de que a repórter destacada para o assunto não saiu da redação.

Se tivesse se deslocado até o hospital, teria descoberto, por exemplo, que a fila anda rápido, muito mais rápido, na segunda porta, aquela dos pagantes.

Além disso, quem passa por ali tem acesso a uma sala de espera, no Instituto Central, mais moderna e bem arrumada, o que poderia reforçar a tese da reportagem, ou inspirar explicações plausíveis por parte dos administradores da instituição.

Também faltou dizer que o Ministério Público Estadual questionou longamente, durante a década de 1990, a existência de dois tipos diferentes de atendimento no complexo hospitalar.

Esse questionamento levou a uma ação popular, que acabou sendo julgada improcedente e que ainda assim os procuradores continuam investigando os critérios de entradas diferenciadas no hospital público.

Sem qualquer juizo prévio sobre o tema, mesmo porque a ação não prosperou na Justiça, cabe questionar quanto a reportagem se interessou de fato pelo assunto que, aparentemente, retrata um exemplo de discriminação dos mais pobres.

Não custa lembrar que a jornalista que parece ter escrito a reportagem sem ter ido ao local foi, há alguns anos, editora do falecido jornal Notícias Populares, de execrável memória.

Aquele foi provavelmente um dos piores momentos da imprensa nacional.