A namorada, o irmão e os problemas sérios
Há algo de estranho no comportamento de uma mídia que se espanta, ou finge espantar-se, com denúncias de corrupção que repetem padrões conhecidos há décadas.
Há algo de nocivo quando os problemas mais graves, como a ligação estrutural entre empresas e política, acabam encobertos por questões menos importantes, como a relação do presidente do Senado com uma ex-namorada ou tentativas canhestras de um irmão do presidente da República de tirar proveito de sua condição familiar.
Isso para não dizer que ficam em segundo plano os problemas verdadeiramente sérios do país, dos quais a ligação de empreiteiras com Legislativo e Executivo é um subproduto.
Semanas atrás houve uma abertura de debate em torno do Programa de Desenvolvimento da Educação que mereceu elogios de gregos e troianos. De lá para cá, reduziu-se ao rotineiro a cobertura das questões educacionais.
No momento há uma ofensiva de mídia importante do ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Aborda vários problemas sérios. Quanto tempo ficará em cartaz?
No palco
Enquanto o presidente Lula puder aparecer em situações positivas na mídia, como na cerimônia de ontem da chegada a Brasília da tocha do Pan, o Planalto não terá razão para se preocupar seriamente.
Mídia e corrupção
Alberto Dines anuncia que o tema do programa de hoje do Observatório da Imprensa na TV será mídia e corrupção.
Dines:
– A corrupção é um fenômeno isolado, só ocorre no Congresso, na política, na administração pública? Esta não seria uma forma de minimizar um processo que já se infiltrou no judiciário, tomou conta da política, do esporte e, agora, como ficou demonstrado no Rio, tomou conta também do carnaval? Como o Estado não tem dono a corrupção é o crime que compensa, a apropriação indevida, mas tolerável? A corrupção é um caso de polícia apenas ou também é um caso de descaso pela moralidade? Sendo assim, a mídia não deveria desempenhar um papel mais importante na cruzada pela decência? E como é que a mídia pode disseminar a cultura da moralidade se ela aceita publicidade enganosa, silencia diante de tantos ilícitos e apela para o sensacionalismo? Mídia e corrupção é o tema do Observatório da Imprensa desta noite. Às onze e quarenta na TV-Cultura e mais cedo, ao vivo, às dez e meia na TV-E.
Leis e mentalidades
Existe uma lacuna crucial no debate em curso sobre a reforma política. Discute-se o que os partidos vão propor e o que será ou não aprovado no Congresso Nacional. Mas não se discute como a sociedade pode agir, ter iniciativas que modifiquem o contexto em que os partidos trabalham. Por exemplo, seria possível criar um movimento para que uma parte do eleitorado, a parte que tem acesso à internet, registrasse de alguma maneira quais foram os candidatos que mereceram seu voto em cada eleição e acompanhasse o trabalho dos eleitos, no Legislativo e no Executivo, com ajuda de material publicado na imprensa.
Mas o debate continua totalmente amarrado a mudanças nas leis, não nas mentalidades.
Ação sem debate
Outro debate que está distante dos problemas de fundo, se é que se pode chamá-lo de debate, é o que foi desencadeado pela invasão da reitoria da USP. Movimento em que a ação teve mais peso do que um corpo coerente de reivindicações.
Total e obscuramente politizado, convida o Estado a empregar a força. E merece uma visão distante da imprensa. Que só poderá ficar mais distante na medida em que estudantes tentam agredir jornalistas, como ontem na assembléia de professores da USP.
A única alegação a respeito do trabalho da imprensa que embasa esse tipo de comportamento consiste em considerar a mídia um braço do aparato repressivo do Estado, o que não fazia sentido nem durante a ditadura militar.
Segue o bangue-bangue
Há quarenta dias cinco mil estudantes moradores das favelas do chamado Complexo do Alemão estão sem aula. Até hoje não foi feita uma reportagem séria sobre os problemas enfrentados por essas crianças, por seus pais, pelos professores, pelos diretores das escolas. Todo o noticiário é centrado no bangue-bangue entre a bandidagem e a Polícia Militar.