Funcionava assim: os jornalistas abordavam os políticos nos corredores do Congresso para colher declarações. Repassavam as falas aos editores, que faziam a compilação mais conveniente para compor um contexto que podia ser chamado de notícia. Esse era o modelo clássico do jornalismo declaratório que predominava nas redações dos principais veículos de comunicação do Brasil.
De vez em quando, um repórter mais esperto vasculhava sites de órgãos públicos e detectava números incongruentes, e uma calculadora ajudava a puxar o fio da meada que poderia conduzir a descobertas interessantes. Depois, era construir uma lógica criminosa por trás daqueles indícios e procurar um agente público disposto a tornar oficial a investigação. Eventualmente, o garimpo dava num veio promissor, dependendo da filiação partidária do acusado, mas na maior parte das vezes era apenas “ouro de tolo”.
Hoje o jornalismo declaratório não exige nem mesmo que o repórter se coloque no caminho do declarante: o político que quiser mandar um recado simplesmente posta uma frase polêmica no Twitter e a imprensa faz o resto do trabalho.
Para atuar como jornalista, é suficiente ter uma conta no serviço de mensagens curtas ou seguir determinados personagens nas redes sociais. Para chamar a atenção da imprensa, basta saber usar esses recursos, ou contratar quem faça esse serviço.
Foi assim que o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, ganhou mais um dia de destaque nas primeiras páginas dos jornais de segunda-feira (15/6), após a entrevista publicada pelo Estado de S.Paulo no domingo, na qual anunciou que dificilmente seu partido, o PMDB, vai seguir integrando a aliança que venceu a eleição presidencial em 2014.
A entrevista mostra Eduardo Cunha usando com inteligência o espaço que conquistou na mídia e explorando a passividade dos entrevistadores. A declaração escolhida para compor a manchete de domingo é apenas uma das opiniões que emitiu durante a entrevista, que faz sentido apenas no atual contexto de crise entre o dirigente da Câmara dos Deputados e o partido da presidente da República.
Cunha foi hostilizado no sábado (13), ao comparecer ao 5º Congresso do PT, e se vingou nas redes sociais, provocando novo abalo nas relações internas da aliança governista.
Malícia ou incompetência
Os jornais fazem parecer que a vontade de Eduardo Cunha basta para mudar a composição do governo e lançar o PMDB oficialmente na oposição. Mas o próprio entrevistado foi muito reticente quanto à possibilidade de uma ruptura, principalmente porque ele considera que a impopularidade da presidente Dilma Rousseff chegou ao ápice e ela tende a se recuperar, na medida em que as relações políticas se estabilizarem e os ajustes na economia produzirem resultado.
Sua afirmação era muito clara: se o governo retirar do presidente do PMDB, Michel Temer, a tarefa de conduzir as negociações com o Congresso, o partido pode deixar a coligação. Essa frase condicional foi transformada em manchete, e o Estado publicou: “O PMDB não repetirá aliança com PT, afirma Cunha”.
Agrega-se a isso o episódio em que o presidente da Câmara, hostilizado por militantes do partido da presidente, reage pelo Twitter, e está configurada nova crise dentro do governo, embora todos saibam que uma frase de Cunha não define o futuro do PMDB.
Essa é a rotina do noticiário político desde a posse da presidente reeleita. Quando não está apostando numa visão apocalíptica da economia, a mídia tradicional está criando ou alimentando a crise que se inaugurou nas relações entre o Executivo e o Congresso desde a eleição de Eduardo Cunha à presidência da Câmara. Trata-se de um jogo no qual, entre as muitas alternativas de frases, fatos e suposições, os editores escolhem prioritariamente aquelas que deixam o Executivo em pior situação.
Adicione-se a essa receita certa malícia, ou má qualidade, na abordagem de temas que produzem controvérsias entre o Executivo e o Legislativo, e temos outra fonte de desentendimentos. São constantes os casos em que indicadores econômicos e sociais surgem nas manchetes com sentido distorcido, o que contribui para alimentar esses conflitos.
Seria preciso vasculhar cada notícia publicada com destaque todos os dias para verificar o que resulta de desatenção, de incompetência ou do interesse em fomentar a crise de governabilidade. De qualquer maneira, está claro que a imprensa brasileira não se dedica mais ao jornalismo puro e simples.