A profissão do polemista
Na atividade de observação da imprensa, não é conveniente analisar as manifestações de articulistas e colunistas, especialmente quando o observador é um deles.
Corre-se sempre o risco de ingressar em polêmicas que mais favorecem as batalhas de egos do que a suposta intenção de esclarecer os fatos.
No entanto, existem circunstâncias em que o observador não pode escapar de opinar sobre as opiniões alheias.
É o caso do último artigo do jornalista português João Pereira Coutinho, publicado na Folha de S.Paulo terça-feira, dia 1o. de dezembro.
Intitulado “Santos e Pecadores”, o texto dá curso a uma persistente teoria conspiratória segundo a qual 4 mil entre os mais destacados cientistas do mundo, envolvidos nas pesquisas sobre mudanças climáticas, teriam forjado a tese do aquecimento global.
Como é característico de todo polemista da imprensa, que precisa fazer muito barulho para preservar seu espaço de exibição, Coutinho manipula silogismos e tenta induzir o leitor a dar crédito à teoria conspiratória a partir de interpretações controversas de comunicações entre pesquisadores do clima, que foram vazadas seletivamente por um hacker.
Vale-se de platitudes. Numa delas, aconselha a não transformar o aquecimento global em nova religião da humanidade. Em outra, afirma que cientistas não são santos, para tentar demonstrar que são criminosos – no caso, os quatro mil cientistas que elaboraram o relatório sobre mudanças climáticas em fevereiro de 2007.
Então, “recomenda” deixar para a ciência a discussão que é sobretudo científica e em seguida afirma que “a ciência dá sinais de manipulação e fraude”.
Por fim, depois de muita marolagem verbal, o articulista se alinha às forças mais reacionárias – que financiam formadores de opinião em todo o mundo para tentar impedir a imposição de maiores controles ambientais à atividade econômica – e afirma que, se a conferência da ONU em Copenhague, marcada para a semana que vem, determinar uma redução de 50% nas emissões de gases do efeito estufa até 2050, haverá “conseqüências econômicas desastrosas”.
E acrescenta que tais conseqüências serão ainda mais desastrosas para os países em vias de desenvolvimento.
Nada mais falso: na verdade, a imposição de regras mais severas para o uso do patrimônio ambiental não apenas tem potencial para estimular a economia, como já está gerando riqueza por todo o mundo, pelas oportunidades de investimento que cria em tecnologias inovadoras e no desenvolvimento de técnicas agrícolas mais eficientes.
Inveja da opressão
João Pereira Coutinho nasceu em 1976, na cidade do Porto.
Sua juventude não seja causa de condescendência ou de condenação a priori. Apenas seja oportunidade para uma reflexão sobre a juvenilização da imprensa.
Coutinho nasceu um ano depois da Revolução dos Cravos, que tirou Portugal da Idade Média – imposta por quatro décadas de ditadura salazarista – e permitiu a inserção do país na Europa contemporânea.
Repete, de certo modo, o comportamento de muitos colegas brasileiros, que, tendo ingressado na vida adulta depois da redemocratização, protagonizam simbolicamente o parricídio de Freud e atuam no sentido de desmoralizar as conquistas das gerações anteriores de jornalistas, seus pais simbólicos.
É como se tivessem inveja de não terem sido contemporâneos da opressão, de não terem uma história de resistência para contar aos filhos.
A ojeriza que têm alguns representantes das novas gerações de jornalistas à palavra “utopia” remete claramente ao desejo de morte.
Não é da competência do observador avançar neste terreno, nem este é o espaço adequado, mas chama atenção o fato de que a obsessão por desqualificar qualquer manifestação ideológica em favor de um mundo melhor pode levar um suposto formador de opinião, privilegiado detentor de espaço cativo em um grande jornal, a defender a tese de que, diante do aquecimeto global, o melhor é cruzar os braços e confiar na indústria do petróleo, na indústria de defensivos agrícolas, nos fabricantes de motosserras e na luminosa bancada ruralista do Congresso Nacional.
Polemistas profissionais vivem disso: do bate-boca – não importando que pensamentos e ações irão produzir suas aleivosias.
Mas deve haver limites para a irresponsabilidade.
“Basta ouvir os catastrofistas para imaginar glaciares que derretem, águas que sobem”, diz o artigo publicado na Folha.
Seria uma anedota, se o autor e o jornal não se levassem tão a sério.