Arriscando a reputação
Todos os anos em que há eleições importantes no Brasil, ou seja, para a Presidência da República e os governos dos Estados, a maioria dos grandes jornais prepara ambiciosos projetos de cobertura, prometendo isenção, distanciamento, equilíbrio e a reprodução da verdade, somente a verdade.
E em todas as campanhas se dá o mesmo fenômeno: jornais e revistas e emissoras fazem suas escolhas mas omitem seu engajamento, e tentam convencer os eleitores de que a cobertura segue os padrões anunciados solenemente na divulgação dos projetos editoriais.
Mas não demora muito para cair a máscara: basta que a realidade contrarie os planos da imprensa para que o trabalho jornalístico se misture à baixaria, que é o cenário inevitável de toda campanha: os programas anunciados pelas coligações nunca são levados a debate e todo o noticiário acaba se resumindo a um ou dois escândalos, nos quais a imprensa passa a martelar todos os dias.
Não que os temas dos escândalos sejam inventados.
Eles existem, sempre existiram, na profusão de buracos que caracteriza o funcionamento das instituições públicas no Brasil.
Mas se transformam em material jornalístico nos dossiês, nas tentativas de macular a reputação do adversário, no esforço para distorcer os fatos em favor deste ou daquele candidato.
Contribui muito para o baixo nível o perfil dos “marqueteiros” contratados pelos partidos para produzir o material de propaganda e para orientar os candidatos sobre sua postura, o tom de voz e até o conteúdo dos discursos nos comícios e nos programas.
Não parecem ser profissionais especialmente preocupados com valores como a ética ou a verdade.
Para se ter uma idéia do nível de fabricação dessas imagens públicas, basta lembrar que uma mesma empresa faz as análises de conteúdo das falas da candidata Dilma Rousseff e do seu principal adversário, o ex-governador José Serra.
A realidade do jogo é a manipulação de dados, a distorção de biografias e o engodo puro e simples, do qual a imprensa acaba participando gostosamente.
No fim das contas, ninguém sabe como o eleitor faz suas escolhas.
E a imprensa cava, cada vez mais fundo, a cova da sua própria reputação.
As viúvas da ditadura
Observe-se, por exemplo, o atual escândalo sobre as invasões de dados sigilosos da Receita Federal.
Há muitos anos sabe-se que listas de dados cadastrais são vendidas livremente nos mercados populares de rua, junto com cópias piratas de filmes que ainda nem entraram em cartaz.
O caso que agora envolve pessoas ligadas ao candidato da oposição, entre centenas de outras vítimas, deveria estar nas páginas dos jornais o ano inteiro, pois não é de hoje que esses vazamentos acontecem.
A falta de segurança nos dados do Imposto de Renda é que deveria ser o centro do escândalo, com a imprensa a exigir um sistema mais seguro e punição severa para os responsáveis.
Mas não parece haver interesse no esclarecimento desses fatos, e sim na repetição contínua de declarações sobre o mesmo ponto.
Nos cadernos dedicados à cobertura eleitoral, predomina a tese de que esse ato de bandidos representa uma tendência totalitária do governo, e há até mesmo aqueles que anunciam uma crise no Estado democrático de direito e o fim da democracia.
Enquanto isso, uma rede de blogueiros saudosos da ditadura faz circular uma suposta ordem do dia emitida na véspera do Dia da Independência pelo comandante interino de uma brigada do Exército no Rio Grande do Sul, na qual o militar critica a mídia, afirma que a sociedade precisa ser protegida de si mesma e defende o golpe de 1964.
Há outras vozes menos assombradas, como a do professor de ética e filosofia da USP Renato Janine Ribeiro, para quem a imprensa abriu mão de cobrir a sério as eleições.
Os exageros são, esses sim, um escândalo.
E que resultados isso tem trazido para a disputa eleitoral?
A julgar pelo rastreamento diário das intenções de voto, nenhum, ou seja, a candidata que disparou na preferência do eleitorado desde o início da campanha na televisão e no rádio continua liderando as pesquisas, a menos de um mês da abertura das urnas.
Muito provavelmente, o assunto que tantas folhas de papel e tantas imagens produziu vai desaparecer de uma hora para outra do noticiário, e os bandidos que vendem informações sigilosas dos cidadãos vão continuar na sombra com seu trabalho sujo, longe da fiscalização da imprensa.