As sandálias da humildade
A Folha de São Paulo inaugura com uma edição festiva, neste domingo, uma nova fase. A reforma, segundo promete o diretor de Redação, Otávio Frias Filho, é mais do que mudanças no desenho e na tipologia: é uma tentativa ambiciosa de reverter as perdas de leitores que a imprensa vem enfrentando na última década.
Os novos cadernos e seções prometem oferecer ao leitor uma organização de temas mais coerente com a complexidade do mundo contemporâneo – a primeira editoria, intitulada Poder, tenta enxergar a política de um ponto de vista mais amplo, propondo abordar o exercício do poder como material jornalístico.
Essa proposta pode ajudar o jornal a escapar da armadilha do partidarismo e avançar para além da costumeira reprodução de declarações de protagonistas da cena política, na medida que permite ao leitor avaliar, no mesmo conjunto, as escolhas desses protagonistas diante de uma variedade maior de questões do que a mera disputa partidária.
A editoria Mundo, que antecede a seção de Ciência, traz uma aposta do jornal na temática que sempre foi um ponto forte do seu maior concorrente, o Estado de S.Paulo, e em sua primeira edição abre uma janela mais ampla do que a que costumava oferecer aos leitores.
O caderno Mercado, que substitui Dinheiro, promete um olhar também mais aberto sobre as questões econômicas, mas ainda é preciso tempo para se observar se o jornal terá fôlego para manter o esforço de reportagem que marca a primeira edição da mudança.
Já na edição desta segunda-feira observa-se uma entrevista sobre a economia da Alemanha deslocada no primeiro caderno, fora da seção específica e vinculada à área de Ciência.
Em sua apresentação do novo projeto, o diretor Otávio Frias Filho lembra que jornalistas costumam ser céticos e que, de tempos em tempos, o assim chamado negativismo da imprensa costuma se voltar contra ela mesma.
A afirmação soa como uma autocrítica de alguma forma surpreendente. Desde que decidiu agredir para valer a concorrência, há pouco mais de vinte anos, a Folha tenta se apresentar como um jornal iconoclasta, o que lhe valeu eventualmente a imagem de arrogante.
Um Otávio Filho mais otimista, declarando que “é preciso ter a humildade de aprender”, é talvez a mudança mais notável na nova fase da Folha de S.Paulo.
Algumas coisas não mudam
Alberto Dines:
– O Estadão fez uma reforma gráfica e editorial há menos de três meses e agora o jornalão parece velho. Ontem foi a vez da Folha: mudou o visual, chamou novos colunistas, trocou cadernos, badalou e até adotou um heterônimo – jornal do futuro. Sinceras congratulações! No meio de tantas novidades e trepidações, o texto mais forte, mais inquietante, provocador e, por isso, mais corajoso está numa coluna antiga, a do Ombudsman, agora ocupada por Suzana Singer.
Já na primeira linha, a Ouvidora revela, de forma clara e inequívoca, a preocupação dos leitores com a renovação do time de colunistas, a indignação causada pela “execução sumária” do economista Paulo Nogueira Batista Jr. e o repúdio à manutenção do senador José Sarney no quadro de colaboradores do jornal.
É o que se espera da defensora do leitor e representante do interesse público. O título da coluna é antológico: “Algumas coisas mudam; outras não”. Antológica e também surpreendente é a justificativa da Secretaria da Redação para manter o senador: “Interromper os seus artigos durante o tiroteio político mais intenso que sofria em 2009 poderia ser visto como uma forma de cercear um dos poucos espaços que Sarney tinha para expressar-se livremente” (as aspas são deste observador).
Lógica espantosa na estréia do jornal do futuro: se for válida, será preciso arrumar espaços para que José Roberto Arruda ou Tuma Jr. se defendam livremente. Eles também estão sob tiroteio intenso e até agora o jornal não lhes ofereceu coluna alguma. Acusados defendem-se através de reportagens ou em tribunais. Oferecer-lhes colunas permanentes é uma aberração arcaica.Cumplicidade.
Há evidentemente outros bons textos na edição inaugural da nova fase da Folha mas é preciso não esquecer que um dos ingredientes mais importantes do jornal do futuro é o meta-jornalismo, o noticiário questionado, a cobertura virada pelo avesso, cética.