Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

>>Atrás da poeira do mercado
>>A miopia social da imprensa

Atrás da poeira do mercado

Os jornais amanhecem outra vez na gangorra da crise financeira, agora alimentando a expectativa por uma nova votação do pacote de socorro proposto pelo governo dos Estados Unidos.

A rigor, não há novidades a não ser o fato de que a rejeição inicial à proposta exigiu maiores esclarecimentos por parte das autoridades americanas, que também estão nos jornais.

Além disso, a imprensa brasileira começa a olhar para dentro, e revela com mais detalhes o nível dos riscos de contaminação por aqui.

No entanto, passadas duas semanas da eclosão da turbulência, a imprensa nacional acumula erros e omissões na avaliação do episódio.

A começar pela revista Veja, que anunciou há duas edições a chegada triunfal da cavalaria ligeira de George Bush, e teve que recuar para uma versão mais cautelosa dos acontecimentos já na edição seguinte.

Uma olhada nas coleções de jornais dos últimos dias mostra que a imprensa não conseguiu desprender sua atenção dos fatos mais imediatos, e com isso perde a oportunidade de oferecer aos leitores uma reflexão mais profunda sobre a crise.

Há muito que dizer em torno das dificuldades dos bancos americanos para entregar o que prometeram aos clientes.

Mas os jornais apenas dão voltas na própria crise.

Por exemplo, não há qualquer citação às relações óbvias entre os fatos no mercado financeiro, o financiamento das próximas safras agrícolas no Brasil e a questão do desmatamento.

A questão é parcialmente coberta pela Gazeta Mercantil, que investiu numa reportagem sobre as dificuldades de produtores rurais brasileiros para renovar seus financiamentos no exterior.

O pacote de ajuda aos bancos deve ir a votação ainda hoje, desta vez no Senado americano, onde a maioria já se manifestou favorável à aprovação.

O processo deve se completar até o final da semana, e, a julgar pelas reações noticiadas pelos jornais, a tendência é que os mercados se acalmem com a simples notícia da aprovação da  operação de socorro, sem se perguntar em que condições o paciente vai sobreviver.

O mercado vai da euforia ao pânico, e vice-versa.

Mas o mercado é irracional como uma boiada.

A imprensa não deveria seguir a poeira, mas apontar caminhos.

A miopia social da imprensa

O presidente do Instituto Ethos, Ricardo Young, lembrava ontem, durante a cerimônia de entrega do 8o. Prêmio Ethos de Jornalismo, um fato já observado por este programa em outras ocasiões: a imprensa não costuma fazer a conexão entre a turbulência que abala o sistema financeiro global e o estado do mundo.

Ricardo Young considera absurdo o fato de que os jornais ainda não tenham atentado para a evidência de que a crise não é apenas resultado da  especulação financeira desenfreada, mas um sintoma claro de que o próprio sistema de negócios global está no caminho errado.

O presidente do Ethos lembrou que os 700 bilhões de dólares que se pretende entregar às empresas americanas ameaçadas de falência por gestão especulativa seriam suficientes para acabar com a fome e a miséria em todo o planeta.

Mais do que isso: o valor desperdiçado pelos especuladores, se fosse aplicado nas medidas corretas, poderia antecipar o alcance das  metas do milênio com as quais o mundo se comprometeu.

Em 8 de setembro de 2000, portanto há oito anos, os 191 países membros da ONU firmaram o compromisso de acabar com a fome e a pobreza endêmicas, erradicar doenças que matam milhões todos os anos, promover a igualdade entre os sexos, tornar universal o ensino básico, reduzir a mortalidade infantil, melhorar a saúde materna, garantir a sustentabilidade ambiental e estabelecer uma parceria mundial pelo desenvolvimento.

A crise que assombra o mundo é uma oportunidade para a sociedade  repensar a ciranda especulativa, que desvia recursos de empreendimentos sustentáveis para a insustentável irresponsabilidade dos cassinos financeiros.

Mas não se lê uma palavra, não se ouve uma frase a respeito dessa questão, que se coloca como o grande desafio da história da humanidade.

É como se a imprensa estivesse sofrendo de miopia social.