Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

>>Desinformação e preconceito
>>‘Nós não somos urubus’.

Desinformação e preconceito

O cidadão alemão Armin Meiwes, foi condenado em 2006 à prisão perpétua por ato de canibalismo.

O episódio grotesco foi notícia na imprensa de todo o mundo, mas não ocorreu a ninguém afirmar que os alemães são antropófagos.

Na semana passada, cinco jovens indígenas da tripo Kulina foram acusados de matar e devorar um jovem branco num ritual de canibalismo.

A notícia correu mundo, através da rede CNN, e foi publicada como verdadeira pela imprensa brasileira.

Representantes da Funai, de ONGs que atuam na região onde vivem os indígenas e antropólogos refutaram a veracidade da notícia, observando que pode ter havido um ato de violência extremada, mas negando que haja entre os índios do grupo étnico dos Kulina a prática do canibalismo.

Depois de inflar o noticiário com a primeira versão, os jornais registraram o contraditório, mas o leitor atento fica com a sensação de que falta alguma coisa.

Afinal, o indígena ainda é visto, neste lado do mundo, como um ser primitivo, bem capaz de cozinhar e comer o fígado do desafeto.

Onde a grande imprensa deixou um vazio que rescende a preconceito, a internet vai mais fundo.

O Blog da Amazônia, produzido pelo jornalista Altino Machado, foi à fonte e entrevistou o pagé Tata Yawanawá, de 94 anos, reconhecido como uma grande reserva de conhecimento sobre as tradições culturais das etnias unidas pelo tronco linguístico Pano.

Recentemente, ele foi o responsável pela iniciação, pela primeira vez, de uma jovem indígena no chamanismo.

Ao submeter a jovem aos duros rituais antes permitidos apenas aos jovens do sexo masculino, ele ampliou as possibilidades de preservação das tradições tribais.

Tata Yawanawá garante que o canibalismo não faz parte dessas práticas.

Ouça a entrevista, com tradução simultânea de Joaquim Tashka.

(O vídeo da entrevista pode ser acessado no blog de Altino Machado e no blog de Joaquim Tashka).

‘Nós não somos urubus’.

Tata Yawanawá:

– Venho da Terra Indígena do Rio Gregório, onde moro, para uma breve visita a Rio Branco, a capital do Acre.

Fiquei sabendo aqui que nossos parentes Txapunawá, conhecidos como Kulina pelos brancos, estão sendo acusados de prática de canibalismo contra um branco no município de Envira, no Estado do Amazonas.

Fui convidado a falar sobre este assunto pelo Blog da Amazônia e devo esclarecer que jamais meus avós e pais mencionaram a prática desse tipo de ritual entre nossos parentes Txapunawá.

Nós conhecemos os Txapunawá como grandes cantadores, fortes pajés e por gostarem de comer cobra jibóia.

Desde pequeno, cresci com meus pais e meus avós antigos. Ouvi falar de muita coisa.

Desde jovem aprendi com os mais velhos a tomar uni, a bebida sagrada também conhecida como ayahuasca. Aprendi a rezar com os mais velhos, a usar as plantas medicinais, a fazer tratamento de pessoas enfermas com a nossa medicina tradicional.

Vendo isto, pude aprender com os mais velhos.

Hoje estou velho, já ficando velho. O que ouvi de meu pai é que existiram alguns povos, povos muito antigos, que guerreavam entre si e quando morriam eles comiam seus mortos.

Não perdiam nada, cremavam o falecido e faziam uma sopa. Faziam isso porque acreditavam que podiam incorporar o espírito do falecido. Mas isso há muito tempo atrás. Há muito tempo não escuto que isso esteja acontecendo em nossa realidade.

Antigamente acontecia isto. Ouvia meu pai contar isso.

Não podemos comer os brancos. Eles não são animais para a gente comer.

Não somos urubus para comer os mortos.

Devem estar enganados ou mentindo quando dizem que os Kulinas estão comendo os mortos. Não podemos comer uma pessoa igual a gente.

Segundo os mais velhos, os povos que comiam seus mortos, só comiam seus próprios parentes. Eles não comiam os brancos. Eles diziam que os brancos era azedos e amargos. Por isso nunca comiam os brancos.