Falta um capítulo
O Estado de S.Paulo conta uma história exemplar sobre o mundo dos negócios e o funcionamento da Justiça no Brasil.
Os protagonistas principais são uma juíza do Rio de Janeiro, seus familiares e o banqueiro Daniel Dantas.
Em depoimento ao delegado Ricardo Saadi, da Polícia Federal, que preside o inquérito chamado Satiagraha, a juíza Márcia Cunha Silva Araújo de Carvalho relatou o inferno em que se transformou sua vida em 2005, a partir do momento em que emitiu uma decisão contra os interesses do controlador do Banco Opportunity.
A magistrada contou que, em 2005, logo após assumir a 2a. Vara Empresarial do Rio, seu marido recebeu uma oferta de emprego muitíssimo bem remunerado no grupo empresarial de Dantas.
Ele recusou o dinheiro, a juíza descobriu que havia sob sua responsabilidade duas ações de interesse do banqueiro.
Tocou os processos, tomou uma decisão contra Daniel Dantas e passou a ser fustigada por seus advogados, até o ponto em que foi abordada na rua e sofreu ameaças de morte contra si e seu filho.
Estranhos rondaram seu apartamento e ela teve que ser protegida por uma escolta.
A perseguição só terminou quando a juíza, abalada psicologicamente, renunciou a prosseguir no caso.
A notícia do Estadão de hoje não é novidade. A novidade é o depoimento prestado por ela ao delegado Saadi, o que coloca o caso oficialmente na Operação Satiagraha e reforça as denúncias sobre os métodos de mafioso que são imputados a Daniel Dantas.
O caso já foi relatado pelo jornalista Luiz Nassif em seu blog, como parte do extenso dossiê que ele preparou sobre o envolvimento da imprensa com o controlador do Opportunity.
O que o Estadão não conta, na edição de hoje, é que, na ocasião em que Dantas perseguia a juíza Márcia Araújo de Carvalho, uma repórter da Folha de S.Paulo chegou a publicar suspeitas contra ela, reforçando o cerco do banqueiro à magistrada.
Somente em 2006, quando a juíza sucumbiu às pressões, a Folha lhe deu espaço e tentou desfazer os ataques que o próprio jornal havia feito à sua reputação.
Os jornais seguem dando mais espaço para as disputas no interior da Polícia Federal e entre a PF e a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, do que aos processos contra o dono do Opportunity.
O Estadão de hoje é uma exceção.
Enquanto isso, a polícia fecha o cerco contra Daniel Dantas e lança mais luz sobre seus métodos.
Está mais do que na hora de a imprensa contar o resto da história, aquele capítulo em que a própria imprensa foi usada como massa de manobra pelo banqueiro.
Por quem os sinos dobram
A globalização resolve o falso dilema sobre os ‘nossos mortos’ e os ‘mortos dos outros’.
Entre os ataques terroristas na Índia e a catástrofe das enchentes no Sul do Brasil, mudam os critérios de seleção dos editores.
Alberto Dines:
– A primeira página da Folha de S. Paulo de ontem contém o dilema filosófico que dominava as redações há algumas décadas: o que seria mais tocante – a morte de um ser humano na esquina ou 10 mortes no outro lado do mundo? Isso foi antes da globalização, hoje estamos todos no mesmo barco. Talvez por isso, a Folha tenha destacado as 86 vítimas do terrorismo islâmico na longínqua Índia e deixado em segundo plano o novo total de mortos pelo dilúvio em Santa Catarina: eram 97, hoje são 99, com 19 desaparecidos e quase 30 mil desabrigados. É o nosso Katrina com a diferença que a calamidade abateu-se sobre uma das regiões mais ricas do país. Não é fato novo, ao contrário da série de atentados na Índia onde se evidencia que o terrorismo islâmico não acabou, está mudando de tática: virou guerrilha, sem homens-bomba suicidas, mais feroz do que nunca. Deixou Nova York, Londres e Madri, agora ataca um país emergente do mesmo grupo dos BRIC ao qual pertencemos. O que deve valer e não apenas para os jornalistas, mas principalmente para os leitores é o axioma humanista de John Donne. No início do século XVII Donne proclamou que nenhum homem é uma ilha, todo homem é uma porção do continente, todas as mortes nos afetam, por isso não devemos perguntar por quem os sinos dobram, eles dobram por todos nós.