Fiéis de má fé
Os jornais noticiam em primeira página, hoje, a liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres de Britto, considerando inconstitucionais vários dispositivos da Lei de Imprensa.
Em tom de comemoração, os diários destacam que a decisão do ministro, mandando suspender todas as ações baseadas em 20 dos 77 artigos da lei, acaba com os processos movidos por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus contra jornalistas.
A guerra do bispo Edir Macedo contra os jornais começou em dezembro, com reportagem da Folha de S.Paulo sobre as relações empresariais entre o bispo, a Igreja Universal e a Rede Record. O texto teve repercussão e gerou outra matérias, mas a ofensiva contra as empresas de comunicação só começou bem depois.
E aconteceu de forma organizada: primeiro, a Rede Record divulgou declarações de fiéis e advogados sobre supostos constrangimentos provocados pela reportagem da Folha.
Em seguida, dezenas de fiéis de várias partes do Brasil abriram processos contra o jornal com base na Lei de Imprensa, exigindo indenização por danos morais.
As ações tinham a mesma redação, o que indica que eram coordenadas por uma consultoria jurídica central, e poderiam revelar uma prática condenada pela justiça e pela ética: a litigância de má fé.
No começo desta semana, a briga se estendeu também aos jornais o Globo, Extra e A Tarde.
Editorial do Estado de S. Paulo ressaltou ontem não haver dúvida de que a abertura de 56 ações por danos morais, com redação homogênea, associada aos depoimentos divulgados pela Record, configurava uma malandragem.
Se é verdade o que afirma o site Consultor Jurídico, segundo o qual as ações foram orientadas pela assessoria da igreja Universal, o caso não pode terminar com a decisão do ministro Carlos Ayres de Britto.
Aí a questão passa para outra instância, que leva ao tema original levantado pela reportagem da Folha que gerou toda a intriga: as relações de negócio entre o bispo Edir Macedo, a Igreja Universal e a Rede Record precisam ser esclarecidas.
Um arremedo de democracia
A decisão liminar do ministro Cayres de Britto não encerra a questão, mas a coloca em termos mais profundos do que a forma como vinha sendo discutida na imprensa.
Alberto Dines:
– Comprova-se novamente que no Brasil a democracia não é um processo fluente, contínuo, mas um conjunto de impulsos e espasmos, muitas vezes contraditórios. Ontem, ao acolher o pedido de liminar apresentado pelo deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), o ministro do Supremo Carlos Ayres de Britto deu um tiro de misericórdia na funesta Lei de Imprensa implantada pela ditadura militar em 1967. Ao mesmo tempo re-assegurou o primado da liberdade da expressão como fundamental para o Estado de Direito. ‘Imprensa e democracia são irmãs siamesas’ sentenciou o ministro. E completou: ‘o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja’. A decisão do STF é provisória, mas pode suspender imediatamente alguns processos orquestrados pela Igreja Universal contra a Folha de S. Paulo que denunciou graves irregularidades no grupo empresarial do bispo Edir Macedo. A decisão do ministro pode ser vista também como resposta da corte suprema ao presidente Lula que na última terça-feira considerou legítimas as ações judiciais da Igreja Universal contra jornais e jornalistas. De qualquer forma, o pedido de liminar acolhido ontem vai criar a maior confusão porque colide com preceitos constitucionais já consolidados. Caso da censura às diversões e espetáculos e da proibição de estrangeiros serem proprietários de empresas jornalísticas. O fim da Lei de Imprensa é reivindicação antiga, mas a consagração definitiva do princípio da liberdade de expressão exige estatutos legais muito claros e, sobretudo, muito coerentes. Democracia caótica é arremedo de democracia.