A classe média vai ao paraíso
Os jornais fazem nesta segunda-feira (16/3) o balanço das manifestações realizadas no domingo em todos os Estados.
A data coincide com os trinta anos da posse do primeiro presidente civil após a ditadura, e a imprensa usa esse fato para comparar os eventos de 2015 com os de 1985.
Jornalistas gostam de datas redondas.
Não há qualquer relação possível entre o período da redemocratização após os anos da ditadura militar e o protesto contra um governo eleito democraticamente, mas a comparação serve para legitimar a adesão à campanha produzida pela mídia.
As divergências quanto ao número de participantes superam a casa das centenas de milhares: o Globo e o Estado de S. Paulo aceitam a avaliação da Polícia Militar, que viu 1 milhão de pessoas na região da Avenida Paulista, enquanto o Datafolha calculou a multidão em 210 mil.
A curiosa dança dos números já havia acontecido na sexta-feira, quando centrais sindicais levaram à mesma avenida 40 mil pessoas, segundo o Datafolha, e apenas 10 mil, segundo a Polícia Militar.
No balanço sobre a cobertura da imprensa internacional, o Estado de S. Paulo observa que o jornal britânico The Guardian (ver aqui o texto original em inglês) destacou o fato de as manifestações serem compostas predominantemente por "pessoas brancas, de classe média".
Isso era o que mostravam as imagens transmitidas ao longo do dia pelas emissoras de televisão, principalmente Record, Band e RedeTV.
A Rede Globo manteve sua programação normal dos domingos, com transmissões mais concentradas no início da tarde, e deixou a cobertura mais intensa para sua emissora de notícias via cabo, a GloboNews.
A Folha de S. Paulo, onde se anota que trata-se de "movimento de centro-direita", encontrou dois negros – uma maratonista e um aposentado – em meio aos rostos brancos.
Louve-se o grande esforço de reportagem.
Mas a personagem mais curiosa citada pelo jornal paulista foi Maria Isabel Fleury, de 83 anos, que pedia a volta do regime de exceção. Ela é viúva do delegado Sérgio Paranhos Fleury, "que ganhou fama como torturador na ditadura", registrou a Folha.
Esse mosaico de personagens não resume a ópera, mas é um bom ponto de partida para entender o processo.
O que não está nos jornais?
Justamente o ponto central do acontecimento: a culminância do processo de convencimento das classes médias urbanas após anos de campanha cotidiana da mídia hegemônica.
As entrevistas de manifestantes durante o ato e registradas pelos jornais nesta segunda-feira repetem refrões martelados pela imprensa ao longo dos últimos anos e intensificados após a vitória de Dilma Rousseff na eleição do ano passado.
Desde o advento da internet, a mídia tradicional vem se caracterizando pela concentração de suas atenções no cotidiano, abandonando gradualmente a contextualização histórica dos acontecimentos.
No Brasil, esse processo coincide com o engajamento dos veículos ligados às empresas hegemônicas num discurso partidário cujo objeto é claramente demonizar as políticas públicas adotadas com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder central.
Não é por acaso que a maioria dos entrevistados durante a manifestação, bem como as palavras de ordem dos incentivadores a bordo dos carros de som, expressavam a percepção da realidade insuflada pela imprensa.
A massa dos protestos estava dividida sobre os objetivos de sua presença nas ruas: segundo os relatos da mídia, havia até mesmo petistas infelizes com a condução do atual governo, misturados aos aloprados que defendem a volta da ditadura, mas a maioria parecia convencida de que o Brasil oscila à beira do abismo, de que a corrupção foi inventada há dez anos e de que todos os políticos são corruptos.
Registre-se que alguns oportunistas, como os deputados Paulo Pereira da Silva, do Solidariedade, e Jair Bolsonaro, do Partido Progressista, foram impedidos de usar os microfones.
Silva luta contra uma condenação por improbidade administrativa à frente da central Força Sindical e Bolsonaro, conhecido representante do que há de mais reacionário no Congresso Nacional, integra o partido mais entalado no escândalo da Petrobras.
No final, prevaleceu o direito de divergir pacificamente, ainda que se possa demonstrar que a opinião da massa foi condicionada pela militância da imprensa.
A classe média, readmitida no jogo da política, está em seu paraíso.
O que virá em seguida vai depender em grande parte da capacidade do governo de mobilizar seus apoiadores e de superar os impasses com o Congresso Nacional.