A metáfora do exoesqueleto
Nesta sexta-feira, 13, o Brasil amanhece com a alma lavada pela vitória de sua equipe de futebol no jogo inaugural da Copa do Mundo.
A imprensa reconhece a ocorrência de um gol ilegítimo, nascido do pênalti imaginado pelo árbitro da partida, mas oferece análises ao mesmo tempo ponderadas e apaixonadas sobre o desempenho da seleção nacional.
Paralelamente, há descrições detalhadas sobre o entorno do espetáculo, com tentativas de protestos que não chegaram a prejudicar o movimento dos privilegiados que conseguiram um ingresso ou dos milhões que se reuniram para acompanhar o jogo diante da TV.
Fica claro que, desde o apito inicial, a grande maioria da população deixa de lado o mau humor fabricado massivamente pela imprensa nos últimos meses e se concentra no que agora é essencial: sim, havemos Copa.
Os pequenos grupos que insistiram em caminhar contra a corrente foram isolados e, em algumas cidades, hostilizados pelos torcedores.
Assim como os ocupantes da área VIP do estádio, que tomaram a iniciativa de vaiar a presidente da República e os representantes da Fifa, os objetores parecem ter se deslocado do conjunto social que se aglomera de olho na bola para algum lugar externo à festa.
A circunstância oferece uma oportunidade para refletir sobre a duplicidade presente nos grandes eventos midiáticos: o dentro e o fora do espetáculo.
São muitos os casos de pessoas que, antes da abertura da Copa, gritavam sua rejeição ao sentimento de nacionalidade, com expressões típicas do "viralatismo" ideológico, e que, ao rolar a bola, se transformaram em fanáticos torcedores.
Mas talvez não haja melhor metáfora para essa dicotomia dentro-fora do que a apresentação do ex-atleta paraplégico que deveria exibir pela primeira vez em público o exoesqueleto criado pelo cientista Miguel Nicolelis e sua equipe.
A celebrada experiência conduzida por Nicolelis, que prometia fazer o jovem andar com a ajuda de um complicado aparelho ortopédico movido por ondas cerebrais, passou despercebida pela maioria dos espectadores que, na arena do Corinthians ou diante das telas, acompanhavam a festa de abertura da Copa do Mundo.
Num canto do gramado coberto, o jovem que envergava a armadura eletrônica produziu um discreto movimento com a perna direita, fazendo a bola rolar por uma rampa.
De fora para dentro
Essa cena deveria ser a expressão mais espetaculosa e a consagração pública do projeto que custou, até aqui, certa de R$ 30 milhões.
No contexto do espetáculo, a experiência equivale a quase nada, porque a imagem, por si, nada esclarece.
Comparado à expectativa que se criou em torno do experimento, alardeado meses antes pela imprensa, foi um fracasso em termos de comunicação.
A falta de explicações sobre como a coisa funciona, na narrativa dos locutores da televisão, esvaziou o interesse do público.
A ideia de fazer pessoas com paralisia recobrarem o controle de seus movimentos por meio de um aparelho que tenta realizar, por fora do corpo, as funções do esqueleto e do sistema nervoso, tem provocado polêmicas no mundo científico.
Além disso, o excesso de exposição do coordenador do projeto acabou por transformá-lo em celebridade midiática e, como sabem muito bem os estudiosos da mídia, a condição de celebridade costuma encobrir todas as qualificações anteriores do personagem: o público passa a reconhecer a figura, mas seus méritos anteriores ficam em segundo plano.
Pode-se dizer que, quanto mais famoso fica o cientista, menor será o valor que lhe será dado como cientista.
Na Globo, a emissora com a maior audiência, o narrador Galvão Bueno tinha um de seus ataques de verborragia quando a cena aconteceu, e se viu alertado pela direção a chamar a imagem de volta para fazer sobre ela um emocionado improviso.
E, em vez do grand finale anunciado por meses, aquilo que deveria ser o coroamento de uma suposta conquista científica se perdeu no meio da festa.
O episódio, pinçado pelo observador no meio do extenso e intenso conjunto de notícias e opiniões que acompanham a abertura da Copa do Mundo no Brasil, serve como ilustração da circunstância em que se encontra a mídia tradicional no contexto da sociedade hipermediada.
Desprendida do núcleo da sociedade a que deveria servir, a mídia funciona como um esqueleto exterior ao corpo social, tentando fazer com que o organismo caminhe na direção que ela deseja.
A relação da imprensa com o público lembra aqueles programas de auditório, onde assistentes erguem placas para a plateia, dizendo: "palmas", "gritos", "gargalhadas". Agora, "festa", "vaias", "inflação", "proteste", "vote neste candidato".
Mas não existe exoesqueleto capaz de fazer a sociedade andar numa mesma direção.